quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

O Dogma Central da Biologia: entenda como a vida ocorre, numa escala molecular

Em última análise, todas as funções do nosso corpo depende do funcionamento correto das proteínas, em especial as enzimas, que sÃo codificadas pelo DNA
DNA -> RNA -> proteína. É assim que tudo é feito. É fundamental entender bem o chamado "Dogma Central da Biologia" pois  ele é a base de tudo o que somos. 

Neste exato segundo, trilhões de enzimas, ribossomos e moléculas de RNA estão flutuando em suas células, fazendo cópias das partes mais fundamentais de você. Entenda todo o processo através dessa matéria ricamente ilustrada.    


O DNA serve para quê?
            Você já foi apresentado ao ácido desoxirribonucleico. Se você é íntimo, deve conhecê-lo pela sigla em inglês, DNA (para ler mais sobre ele, clique aqui). Os livros costumam dar nomes chamativos para o DNA, como "o segredo contido no núcleo da célula", "uma molécula que faz com que cada um de nós seja único e especial". A pergunta que eu sempre me fazia ao começar a estudar Citologia era: como um conjunto de letrinhas – as bases nitrogenadas – tinha tamanho poder de definir se um ser vivo iria ser uma bactéria ou um ser humano?

            É fato que cada gene controla uma característica. E temos, pelo menos, 20.000 genes, herdados de nossos pais. Cada um desses genes realmente nos faz ser especial. Mas, afinal de contas, o que importa se sua sequência genética, para certo gene, for TACTACATAC ou GATCGATCGAT? Como o sequenciamento das bases nitrogenadas – simples moléculas – pode ser capaz de interferir tremendamente na sua aparência física? Como isso determina se você terá cabelos ruivos ou castanhos; cabelos cacheados ou lisos; olhos azuis ou pretos? Como podem ocorrer as chamadas "doenças genéticas", como, por exemplo, a doença de Tay Sachs, que, quase por via de regra, não podem (ainda) ser curadas?  
 
A sequência de bases nitrogenadas contém as informações para a construção das proteínas
            Acontece que o DNA não faz muita coisa – apesar de ter uma tremenda importância (não é à toa que ele ocorre em todos os seres vivos). Ele fica no núcleo das células e, toda vez que ocorre uma mitose, precisa ser copiado. É que é ele que vai coordenar o funcionamento das células. O DNA é um código ou, se você preferir, um grande livro de receitas. Cada gene é uma receita em especial. E, quando o maquinário celular resolve pôr a mão na massa, o resultado final é uma proteína. São elas, no fim das contas, que fazem de nós únicos e especiais – o DNA dá a ordem para construí-las.

            Por exemplo: se, na íris de seus olhos, o gene da melanina for muito ativo (ou seja, estiver "dando ordens" para a receita sair do papel), você terá olhos castanhos. Pode haver, porém, genes inibindo a produção da melanina na íris. Nesse caso, os olhos serão azuis. O olho verde acontece quando certa quantidade (mas não muita) melanina é feita. As doenças, por sua vez, acontecem quando há defeitos na construção de uma proteína (em geral, enzimas). Esses defeitos são causados por erros na sequência de bases nitrogenadas. Pequenas modificações em tal sequência podem resultar em proteínas com formatos totalmente distintos, e, por isso, não-funcionais. Vamos ver como isso acontece.

            DNA em RNA: a transcrição
RNA polimerase "caminhando" sobre a dupla hélice de DNA e sintetizando o RNA. Fonte: "Art of the Cell"

            O DNA é um livro de receitas permanente. Por causa de sua grande importância, ele jamais deixa o núcleo, onde fica guardado em segurança. Mas, então, temos um problema: os ribossomos – que são as "fábricas" onde as proteínas são feitas – ficam no citoplasma. Para resolver isso, a informação genética do DNA é copiada em um papel qualquer, como um rascunho, que pode ser, mais tarde, destruído. Esse papel para rascunho é o RNA mensageiro. Trata-se da molécula que leva as informações do DNA para o local de síntese de proteínas, isto é, os ribossomos do citoplasma. O RNA, como você talvez já saiba, é um ácido nucleico filamentoso, que possui como pentose a ribose. Em vez de timina, ele possui uracila como a base complementar à adenina.

            O processo em que o DNA é copiado em RNA chama-se transcrição. Acontece assim:

Iniciação
Uma enzima, RNA polimerase, se liga ao DNA, a partir de uma sequência específica de nucleotídeos, chamada de promotor. É ali que começa determinado gene.

Alongamento

Neste momento, aquelas ligações de hidrogênio que mantinham as bases nitrogenadas do DNA unidas são quebradas por uma enzima chamada de DNA helicase. A RNA polimerase começa a se mover ao longo da fita de DNA. As bases nitrogenadas expostas são pareadas com nucleotídeos do RNA: A com U; T com A; G com C e C com G. É como se todo o DNA fosse reescrito, numa cópia fiel, mas em outra língua – tudo isso feita numa velocidade estimada de 30 nucleotídeos por segundo. Usa-se as bases nitrogenadas complementares para formar a fita de RNA – e a informação para fazer a proteína está toda copiada ali.

Finalização (processamento)
Os íntrons são removidos, restando apenas os éxons, que são as regiões codificantes
Ao chegar às bases nitrogenadas finais, o RNA recém-formado é desassociado do DNA. Mas o RNA ainda não está pronto: há algumas partes da receita que foram transcritas, mas elas são inúteis para fabricar a proteína. Elas são chamadas de "íntrons" (intragenic regions) – são sequências de bases nitrogenadas que não codificam proteína alguma e que precisam ser removidas.  É por isso que o nome mais correto para o RNA recém-sintetizado é pré-RNA. Após a remoção dos íntrons, no que é chamado de "processamento", forma-se um RNA mensageiro totalmente funcional. Ele é formado apenas por "éxons" (extragenic regions) e, assim, está pronto para ir ao citoplasma e dar as instruções para a síntese proteica. O processamento é mediado por um conjunto de proteínas chamadas de "spliceossoma".

Ação da DNA ligase

Algo digno de nota é que a fita de DNA, que havia sido rompida para a transcrição, é regenerada. Surge um complexo proteico chamado de DNA ligase. Esse complexo envolve o DNA como um relógio em torno de um pulso. Observe na foto acima. Tais proteínas funcionam como uma cola, que consegue refazer aquelas ligações de hidrogênio entre os nucleotídeos das duas fitas de DNA. Milhões de moléculas de DNA são naturalmente rompidas durante a vida de uma célula. Sem proteínas que conseguem "juntar os pedaços", as células podem não funcionar, morrer ou até mesmo se tornar cancerosas.

Tradução
            A tradução é o passo final na síntese proteica. Nele, o RNA é transformado em proteína. A tradução ocorre num local especial: os ribossomos. Há ribossomos livres no citoplasma celular. Eles sintetizam proteínas que serão usadas no interior da célula. Caso as proteínas precisem ser construídas para a exportação (ou seja, destinadas à outras células), a síntese ocorre nos ribossomos aderidos à superfície de um conjunto de canais chamados de retículo endoplasmático rugoso.

            Do ponto de vista estrutural, o ribossomo é formado por duas subunidades, que são constituídas pelo seu próprio RNA, o RNA ribossômico, e várias proteínas associadas.

            Pessoalmente, acredito que a compreensão do Dogma Central (e, principalmente, do processo de tradução) seja uma das partes mais importantes no estudo da Biologia. Entender como que o genótipo (ou seja, o conjunto de genes) se transforma em fenótipo (as características de cada um de nós, que dependem de quais – e o quanto de – proteínas que sintetizamos) é a base para todos os outros campos de estudo.

            Os ribossomos formam um maravilhoso e sofisticado maquinário que existe em todas as células, de todos os seres vivos. Com esse instrumento, nossas células sintetizar combinações infinitas de proteínas – basta alterar a ordem das bases nitrogenadas do DNA e, com isso, a do RNA. Vamos entender como isso ocorre:

Iniciação
Representação da subunidade menor de um ribossomo
Cada trio de nucleotídeos do RNA chama-se códon e, na linguagem molecular que as células desenvolveram, cada códon corresponde a um aminoácido específico. Por exemplo: o trio CUG é traduzido para o aminoácido leucina, CGG como arginina e UAA é um dos três trios que significa "PARE!" – usado no final da síntese proteica (códon de parada).

Um problema: Há 64 combinações de bases nitrogenadas possíveis. No entanto, há apenas 20 aminoácidos usados na síntese proteica. O código genético é, então redundante. Há trios de nucleotídeos que codificam, por vezes, o mesmo aminoácido.A tabela a seguir estabelece as relações entre códons e aminoácidos.

A síntese proteica é muito mais complexa que a transcrição e requer o auxílio de um conjunto de moléculas: proteínas, RNAs e, por vezes, uma combinação desses dois (o que ocorre nos ribossomos).

A combinação entre códon e o aminoácido codificado por ele é feito por um tipo de RNA especial, o RNA transportador. O RNA transportador se liga brevemente ao códon, por ter as bases nitrogenadas complementares à ele. Tais bases complementares são chamadas de anti-códon. Na outra ponta do RNA transportador, está o aminoácido codificado pelo RNA mensageiro.    Desse modo, cada trio de bases nitrogenadas irá se ligar à um RNA transportador específico, que trará, por sua vez, o aminoácido codificado.
Quatro códons diferentes codificam a glicina, por exemplo. Por isso diz-se que o código genético é redundante
Alongamento
 O ribossomo atua com a ajuda de várias outras proteínas. Entre a subunidade maior e a subunidade menor do ribossomo, se insere a fita de RNA mensageiro. O ribossomo "caminha" por ela e, durante o processo, alinha os RNA transportadores e faz a ligação peptídica entre os aminoácidos associados a eles.
O RNA transportador trás aminoácidos de acordo com a mensagem contida na fita de RNA mensageiro


Terminação
Ao atingir o códon de parada, a cadeia polipeptídica formada é desassociada do RNA-t. Essa proteína pode ser usada na própria célula ou secretada para atuar no meio extracelular.

Entendendo as doenças genéticas
A sequência de aminoácidos é crítica, pois ela que determinará o formato tridimensional da proteína. Os aminoácidos irão interagir e a proteína irá se dobrar, formando uma estrutura de geometria única. E é essa estrutura, chamada de estrutura terciária, que permitirá que a proteína funcione. Por exemplo, em enzimas, o sítio ativo é o local onde ocorre o encaixe dela com o substrato. Se o código genético for alterado e codificar aminoácidos diferentes, esse sítio ativo não mais terá o encaixe perfeito para o substrato. A enzima não funcionará, o que resultará em alguma doença metabólica. Clique aqui para conhecer melhor sobre proteínas

Resumindo
Você possui trilhões de pequenos laboratórios em seu corpo. Nesse exato segundo, suas células utilizam fundamentalmente o mesmo mecanismo para sintetizar proteínas que nosso ancestral mais antigo, de bilhões de anos atrás, utilizava. Em resumo, cada gene codifica uma proteína. Mas aqui está o problema: o código genético fica protegido no núcleo celular, e o local de produção das proteínas são os ribossomos - estruturas localizadas no citoplasma. Para resolver isso, a informação do gene é copiada em outro ácido nucleico, o RNA mensageiro, que viaja até aos ribossomos citoplasmáticos, levando a informação ditada pelo DNA. Recrutando a ajuda de outras várias proteínas para funções específicas, o ribossomo lê a fita de RNAm e a decodifica. Cada trinca de nucleotídeos gera um aminoácido específico. Os aminoácidos vão sendo colados um ao outro e, assim, proteínas são construídas. E é assim que o DNA é expresso.

            Em resumo: DNA --> RNA --> proteínas. Esse processo foi chamado por James Watson de "Dogma Central da Biologia". Pode soar estranho, pois "dogma" é algo frequentemente associado à religião. No entanto, o nome faz jus a grande importância do processo.

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