segunda-feira, 6 de abril de 2015

Nirvana em cápsulas: dos barbitúricos aos benzodiazepínicos

Por Matheus Pereira
Para o Bioquimica da Depre

Domingo, 5 de agosto de 1962, Brentwood, Califórnia.

"Parece que foi suicídio", afirmou o legista. O sol nem tinha nascido ainda e ela fora encontrada morta. Na cama, a estonteante Marilyn Monroe jazia nua, coberta apenas por alguns lençóis. Seu braço direito - todo pálido - segurava um telefone, encaixado ao gancho. Desviando os olhos daquele cenário teatral, os policiais se espantaram ao ver a mesinha de cabeceira. Vários frascos de comprimidos se empilhavam: remédio para sinusite, para alergia... Mas entre aqueles frascos, havia um totalmente vazio.

Aquele frasco continha, algumas horas atrás, 25 comprimidos de 100 miligramas cada de pentobarbital, uma droga da classe dos barbitúricos, que são medicamentos sedativos-hipnóticos. A prescrição datava de 3 de agosto, e fora autorizada pelo doutor Hyman Engelberg.

Os exames de autópsia comprovaram doses astronômicas de pentobarbital no sangue e no fígado de Marilyn Monroe - falam em algo torno de 60 cápsulas: o suficiente para matar 3 pessoas, pelo menos.

Como se a overdose não fosse suficiente, Marilyn ainda misturou o forte pentobarbital (que hoje só é usado para a eutanásia de animais) com cloral. O cloral é outro sedativo: e misturar depressores do sistema nervoso é algo que geralmente tem um efeito sinérgico desastroso. E foi o que houve: o resultado dessa combinação foi uma parada cardiorrespiratória irreversível.

Pentobarbital, uma das moléculas que matou Marilyn
É verdade que a morte de Marilyn permanece coberta por controvérsias. Aventaram  a ideia de que ela fora, na verdade, assassinada. O relatório oficial da polícia afirma que a morte foi um provável suicídio. Seja lá o que tenha ocorrido na misteriosa noite de 4 de agosto de 1962, ainda assim temos uma certeza. Aquela atriz de cabelos loiros, curvas sexy e sorriso atrevido dependia de doses elevadas de sedativos para suportar os dissabores que vieram com a fama.

O mesmo calmante que havia matado Marilyn, antes a ajudava a loira a viver: amenizava o seu nervosismo, colocava fim à sua angústia,  dissipava a ansiedade - tudo era uma paz sem fim, quase como andar em nuvens. E, até hoje, nós também buscamos esse sentimento. Alguns com medicamentos, tais quais os benzodiazepínicos - muito semelhantes aos barbitúricos.

Sexta-feira, 15 de novembro de 1963
A Roche revolucionou com a descoberta (por pura serendipidade) do primeiro "benzo" no fim dos anos 50. O diazepam chegou aos EUA na década seguinte
O diazepam (comercializado pelo nome de Valium) foi aprovado para venda nas farmácias norte-americanas. Nascia uma nova classe de drogas: os benzodiazepínicos.

O diazepam, primeiro benzodiazepínico a chegar aos
Estados Unidos
Os benzodiazepínicos, como foram chamados, são anticonvulsivos e sedativos-hipnóticos. O fenômeno é dose dependente: um pouco de "benzo" combate a ansiedade - e um pouco mais já induz o sono. São mais seguros que os barbitúricos. Apesar de ainda manter potencial para abuso - eles viciam - os benzodiazepínicos são menos tóxicos que os primeiros.

Uma overdose fatal de diazepam, Frontal (alprazolam), Rivotril (clonazepam) por exemplo, é algo raro - exceto se tomados juntos de outros depressores do SNC, como álcool ou antihistamínicos. E o efeito de um benzodiazepínico pode ser revertido com a administração de um antagonista específico, chamado de Flumazenil. Não há nenhum "antídoto" desse tipo para os barbitúricos.

Por essas e por outras, nos anos 70, os barbitúricos deram largamente espaço aos benzodiazepínicos, que se tornaram a droga de preferência para tratar insônia e ansiedade. Os médicos deram o aval ao diazepam do laboratório Hoffmann-La Roche, conclamando-o como uma droga com baixa toxicidade, que em ocasião alguma causaria parada cardiorrespiratória e nem dependência (os dois últimos seriam negados mais tarde). 
"Para ajudar a aliviar a tensão e a ansiedade" - comercial de 1967 do Oxazepam, benzodiazepínico
Desse modo, os benzodiazepínicos da suíça La Roche praticamente tiraram os barbitúricos do mercado. Para os pacientes, o diazepam era um excelente calmante, o "Mother's Little Helper", como cantou The Rolling Stones num ode aos comprimidos. Já para a La Roche, o diazepam foi um muito poderoso estimulante, que rapidamente catapultou a empresa para o rol das companhias farmacêuticas mais bem-sucedidas do mundo. O diazepam (Valium) foi extremamente lucrativo, sob o manto de uma droga não tóxica, mas ainda assim, fortemente calmante.

Embora seja audacioso afirmar tal coisa, uma Marilyn nos anos 70 teria muito mais chances de sobreviver ao tentar se suicidar do que aquela que era prescrita Nembutal. De qualquer forma, os benzodiazepínicos ainda tem grande potencial para abuso.

Brasil: nação Rivotril
Por que vendemos mais caixas de Rivotril do que pomadas de Hipoglós?

A partir do diazepam, vieram várias outros benzodiazepínicos. Eles atuam no mesmo local nas células do sistema nervoso: ocupam um sítio alostérico em complexos proteicos gabaérgicos. Essas drogas diferenciam-se pelo início da ação e o tempo em que permanecem no organismo (tempo de meia-vida).

Rivotril tem até "capinha" para iPhone 5. Uso se tornou banal
O Rivotril, nome comercial para o benzodiazepínico clonazepam, é a droga tarja preta mais utilizada no Brasil (em 2012). O Brasil é o maior consumidor do mundo de clonazepam: foram 2100 kg da droga em 2010. Isso representa 10 milhões de caixas de Rivotril nesse ano, junto de 4,4 milhões de caixas de bromazepam, outro ansiolítico, também em 2010. Como que se explica um consumo tão alto em território nacional de um remédio prescrito apenas por psiquiatras para tratar distúrbios de ansiedade extrema?

O consumo do Rivotril e outros benzodiazepínicos está altamente banalizado no Brasil. Vende mais que Dorflex. Será que temos mais pessoas com Transtorno de Ansiedade Generalizada, fobias e ataques do pânico do que pessoas com dor muscular? Não. O Rivotril é, por muitos, usado para lidar com a mínima inquietação ou nervosismo que venha incomodar o dia.

Empurra-se os problemas com a barriga com os "comprimidos relax". O Rivotril dizima aquela aflição antes de uma entrevista de emprego e dispersa o nervosismo antecedendo a apresentação de um trabalho. Seja para aplacar a tensão de ver as contas para pagar se empilhando ou então para acalmar os nervos diante das frustrações de um relacionamento, o Rivotril está lá. A tarja preta, que indica o potencial de abuso da droga, não mais assusta os seus usuários.

E basta uma mordida no comprimido para ser acobertado por uma paz artificial e prolongada (a meia-vida do remédio é de 18 horas). Um pouco mais que isso, vem os efeitos hipnóticos, induzindo o sono. É uma solução urbana e conveniente. Basta comprar uma caixa, que custa em torno de 10 reais. E levar uma cartela nos bolsos ou numa necessaire para te acompanhar ao longo do dia.

Como age o Rivotril?
O Rivotril atua da mesma forma que outros medicamentos da classe dos benzodiazepínicos. 
Quando o GABA encontra seu sítio ativo, causa a entrada de íons cloro no citoplasma celular

Há vários neurotransmissores no corpo. São químicos usados na comunicação entre as células nervosas, os neurônios. Alguns desses neurotransmissores tem efeito tranquilizante e outros estimulante. Os estimulantes são responsáveis pela alerta, coordenação, memória, batimentos cardíacos e pressão arterial. Mas o seu excesso pode ser um baita incômodo.

Quando alguém está estressado ou sob muita tensão (em ataques de pânico, por exemplo), é de se esperar uma grande excitação na circuitaria cerebral. Há um pico de neurotransmissores estimulantes. E eles fazem com que haja um porção de impulsos nervosos cruzando a massa cinzenta a cada milissegundo.

GABA é o nome de um dos neurotransmissores do time dos tranquilizantes. Ele é um "calmante" natural, diminuindo a condução dos impulsos nervosos. O que os benzodiazepínicos fazem é potencializar a função do GABA. Isso inibe o excesso de estímulos que estavam sendo disparados anteriormente - o cérebro fica menos "ativo". O número de neurotransmissores estimulantes também cai.

Complexo proteico transmembranar GABAa. Note que há receptores específicos para os barbitúricos e para os benzodiazepínicos.
Em detalhes, o processo funciona assim: o GABA possui um receptor específico na membrana celular dos neurônios. É um complexo de proteínas, chamado de complexo GABAa. No centro desse complexo gabaérgico, há um poro contendo íons cloreto. A ligação do GABA ao seu sítio ativo causa um influxo de íons cloreto para o interior dos neurônios. Isso causa a hiperpolarização neuronal, o que torna mais dificultosa a despolarização (atingir o potencial de ação) necessária para a condução do impulso nervoso.

Os benzodiazepínicos tem um sítio específico nesse complexo gabaérgico. É importante notar que os "benzos" não mimetizam a ação do GABA. Eles se ligam a um sítio puramente alostérico e, ao fazê-lo, potencializam o efeito do GABA. Os íons cloreto entram no neurônio em maior frequência, tornando esse neurônio mais resistente aos efeitos dos neurotransmissores estimulantes.

Os barbitúricos também tem um sítio ativo específico no receptor GABAa. A ação é semelhante a dos benzodiazepínicos, mas em vez de permitirem maior frequência na abertura do canal de íons cloreto, permitem que os íons cloreto a passagem por tempo mais prolongado no neurônio.