sábado, 7 de março de 2020

Lesão renal aguda


A  lesão renal aguda tem como uma de suas etiologias a azotemia pré-renal (isto é, aumento da concentração de produtos nitrogenados por razões extrínsecas ao rim). Nesse grande grupo, temos a hipovolemia - que reduz a pressão hidrostática no glomérulo e prejudica a filtração renal. Insuficiência hepática e cardíaca, por diminuírem o volume que circula no corpo, produzem o mesmo efeito. Também, como 20% do débito cardíaco passa pelo rim, a diminuição de débito cardíaco reduz a filtração de produtos nitrogenados. A dilatação da arteríola aferente pelo NO e prostaglandinas mantém a perfusão glomerular; já a angiotensina II contrai a arteríola eferente para aumentar a pressão intraglomerular. AINEs, i-ECA, BRA e ciclosporina alteram esses mecanismos de contratilidade dos vasos sanguíneos das arteríolas aferentes e eferentes, perturbando a autorregulação renal.

A azotemia pré-renal sustentada pode levar a lesões intrínsecas, especialmente a necrose tubular aguda, que pode ser isquêmica (por redução contínua do fluxo de sangue renal), tóxica (por uso de drogas nefrotóxicas, como anfotericina e aminoglicosídeos) e séptica (por inflamação, apoptose e também isquemia). Glomerulonefrite e vasculite, por causas alérgicas ou autoimunes, são raras, mas preocupantes.

Já a lesão pós-renal aguda ocorre quando o fluxo unidirecional da urina é bloqueado por algum fator obstrutivo. Por exemplo, a hiperplasia prostática benigna pode impedir a passagem de urina e resultar num aumento retrógrado da pressão hidrostática, culminando com prejuízos na função renal. Outra causa é a obstrução por um cálculo (nefrolitíase) em pessoa com rim único. Neoplasia infiltrando-se na parede dos ureteres, fibrose retroperitoneal causando compressão extrínseca nos ureteres são todas causas possíveis de interrupção do fluxo de urina e aumento da pressão intraglomerular a ponto de interromper a filtração.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Síndrome de Guillain-Barré

A Síndrome de Guillain-Barré é uma patologia imunomediada que tipicamente ocorre após um processo infeccioso, podendo causar paralisia neuromuscular. As infecções mais envolvidas são as pela bactéria Campylobacter jejuni, pelo citomegalovírus, pelo vírus Epstein-Barr, vírus Zika e pelo HIV. 

Anticorpos formados contra esses patógenos reagem cruzadamente contra os gangliosídeos e outros glicolipídeos encontrados na membrana de nervos periféricos. Além do mimetismo molecular, alguns autores brasileiros propõe que a apresentação de antígenos pode levar diretamente à produção de autoanticorpos na Síndrome.

Epidemiologia
A incidência é maior em homens e aumenta com o passar da idade. Em recente análise, foram revisados 327 casos publicados na forma de relato entre 2003 e 2018. Evidenciou-se que homens entre 44 e 71 anos foram os mais acometidos pela Síndrome. Quanto à etiologia, a avaliação mostrou que a maior parte dos casos de Guillain-Barré era precedida por dengue ou zika - mas muitos estudos se deram durante o contexto da epidemia de zika na América Latina.

À época, a partir de 2015, houve um aumento das internações por Guillain Barré no Brasil. Entre 2008 e 2014, houve uma média de 1344 internações por ano, contra 2216 internações em 2016. Houve um incremento de 52% - iniciando-se uma fase de cenário epidemiológico sem precedentes no País, catalisado pelo zika vírus.

Mais raramente, quimioterapia com compostos de platina podem causar a Síndrome de Guillain-Barré. Evidências sugerem que a platina pode ser um gatilho para a autoimunidade, estimulando a formação de anticorpos contra a bainha de mielina.

Achados clínicos
O achado central dessa polineuropatia é a fraqueza simétrica bilateral em ambos os membros (superiores ou inferiores), que leva a uma paralisia ascendente. Os membros afetados tipicamente apresentam arreflexia ou hiporreflexia. A presença de hiperreflexia na síndrome de Guillain-Barré é rara, mas é relatada - e não deve ser motivo para atraso na terapia imunomoduladora.

O acometimento respiratório ocorre em 10 a 30% dos pacientes infectados. Eventualmente, pode haver necessidade de ventilação artificial. Atenção deve ser dada aos sinais e sintomas de desconforto respiratório, que podem ter valor premonitório de necessidade de intubação.

Muitos pacientes (aproximadamente 60 a 90%) também apresentam dor além da fraqueza, especialmente na fase inicial. Essa dor é em geral por inflamação da raiz nervosa, desmielinização e a degeneração do nervo sensitivo pelo ataque imunomediado. A dor pode cronificar, mesmo após resolução da flacidez e paralisia. Parestesia também pode ocorrer.

Sintomas mais graves incluem disfunção autonômica, com flutuações na pressão arterial e na frequência cardíaca, além de retenção urinária.

A doença tem uma fase de progressão, com o avanço da paralisia; de manutenção, em que os sintomas se tornam estáveis; e de regressão, em que, em especial com o tratamento, há melhora da qualidade de vida e independência, como evidencia um estudo brasileiro.

Há alguma chance de efeitos residuais observados em longo-prazo, como perda de autonomia, queixas físicas e mentais, além de depressão, associados a Síndrome de Guillain-Barré.

Diagnóstico
Inicia-se com uma anamnese completa e exame físico detalhado. 

Exames complementares, como a punção lombar, podem auxiliar na conclusão diagnóstica. A análise do líquor irá revelar um achado conhecido como dissociação citoalbuminológica: há um aumento do nível de proteínas, mas a celularidade mantém-se normal (geralmente, menos que 6 células brancas). Isso é característico, mas não é patognomônico. A eletroneuromiografia e estudos de condução nervosa também são úteis no diagnóstico.

Tratamento
O tratamento gira em retorno do manejo de sintomas. É importante, contudo, que quando os sintomas são severos - como desconforto respiratório - o paciente receba cuidados intensivos. Muitos deles irão necessitar de intubação orotraqueal.

Duas terapias utilizadas para pacientes com Síndrome de Guillain-Barré são a plasmaférese e imunoglobulina endovenosa. Não há benefício em associá-las; e uma não é melhor que a outra. O que pode ser decisivo é o início precoce - em geral durante as duas primeiras semanas de evolução.

A dor é neuropática, mas também tem componentes inflamatórias, comumente exigindo uma abordagem multimodal. Anticonvulsivantes, que são úteis para dores neuropáticas (como pregabalina e gabapentina) e anti-inflamatórios podem ser associados. Opioides devem ser usados com extrema cautela pelo risco de depressão respiratória.

A fisioterapia também é fundamental para melhor prognóstico do paciente com Guillain-Barré. O tratamento fisioterapêutico reduz a limitação funcional e o déficit motor, além de oferecer suporte respiratório.

Emergências em Diabetes Mellitus

Emergências continuam a ser importante causa de morte prematura em pacientes com diabetes. Incluem os comas diabéticos (hipoglicemia, cetoacidose diabética severa, hiperglicemia hiperosmolar, acidose lática), cirurgias de emergência e infarto do miocárdio.

Coma diabético
O nome pode não ser tão apropriado, uma vez que muitas pacientes apresentam-se sonolentos ou com estupor, mas não comatosos. Informações clinicamente úteis incluem estado de hidratação, pressão arterial, pulso, estado da pele e temperatura corporal.

Coma hipoglicêmico
Dificilmente, apresentarão-se desidratados. A pele é fria, úmida e pegajosa. O pulso é mais rápido e são normotensos. O diagnóstico é feito pela glicemia capilar. É comum entre pacientes tratados com insulina ou com sulfonilureias, como glibencamida. Refeições perdidas ou atrasadas, ou exercício intenso são as principais causas entre insulinodependentes.

O tratamento clássico consiste na infusão endovenosa de glicose, 20 mL a 50%, em bolus. Logo após, carboidrato via oral ou infusão contínua de glicose a 10% (100 a 200 mL por hora conforme leitura de glicemia).

Outra possibilidade é o uso do glucagon, que pode ser dado intramuscular ou endovenoso. A dose padrão é de 1 mg, mas menores são adequadas. Esse hormônio irá mobilizar o glicogênio hepático, efeito que é pouco duradouro. Portanto, glicose via oral deve ser o próximo passo. É especialmente útil quando há dificuldade em obter o acesso do paciente.


Cetoacidose diabética
Uma das complicações metabólicas agudas mais sérias da diabetes. Trata-se de uma perturbação metabólica que consiste em três alterações em paralelo: alta concentração de glicose sanguínea, alta concentração de corpos cetônicos e acidose metabólica.

Na maior parte das vezes, acomete pacientes com diabetes tipo 1, mas muitos pacientes com diabetes tipo 2 podem desenvolver cetoacidose sob condições médicas ou cirúrgicas estressantes (isto é, em cenários de estresse orgânico). Na maior parte das vezes, há uma infecção subjacente que configura-se como fator precipitante. Não adesão à terapia insulínica, estresse psicológico, cirurgia, trauma e isquemia miocárdica são outros fatores de risco.

Patogênese
A cetoacidose diabética é caracterizada por hiperglicemia descontrolada, acidose metabólica e aumento da concentração de corpos cetônicos circulantes. A cetoacidose é resultado da ausência absoluta ou relativa (isto é, por ineficácia em sua ação) da insulina e, ao mesmo tempo, da elevação dos chamados hormônios contrarreguladores (glucagon, catecolaminas, cortisol e hormônio do crescimento).

A insulina tem ações anabólicas e anti-catabólicas. Por exemplo, impede a quebra de glicogênio hepático para a formação de glicose (o que elevaria a glicemia) e, ao mesmo tempo, aumenta o anabolismo proteico, a captação hepática e periférica de glicose e seu depósito na forma de glicogênio. Inibe também a lipólise e a cetogênese. Os hormônios contrarreguladores opõem-se a essas ações tanto no fígado quanto nos tecidos periféricos, alterando a deposição de glicose e também elevando a quebra de gordura para a produção de corpos cetônicos.


O mix de ausência de insulina e elevação de hormônios contrarreguladores gera aumento da quebra dos estoques de glicogênio e elevação da glicose sanguínea, com baixa captação hepática e periférica. A hiperglicemia promove uma diurese osmótica, levando à hipovolemia e redução da taxa de filtração glomerular. Isso agrava ainda mais a hiperglicemia.

A deficiência de insulina combinada à elevação de catecolaminas e cortisol eleva a quebra dos estoques de triglicerídeos, com a liberação de grande quantidade de ácidos graxos, que serão oxidados no interior de mitocôndrias, gerando corpos cetônicos (processo mediado pelo glucagon).

Fatores precipitantes
A cetoacidose diabética pode ser o momento de diagnóstico de pacientes com DM1. Em pacientes que já sabem ter diabetes tipo 2, infecções, outras comorbidades, estresse psicológico e má adesão terapêutica podem ser os fatores precipitantes do quadro metabólico. Entre as infecções, especial atenção à pneumonia e ITU. Abuso de álcool, trauma e infarto de miocárdio também merecem citação.

Medicamentos também podem precipitar crises de cetoacidose. É o caso dos antipsicóticos como olanzapina e risperidona e também uma nova classe de antidiabéticos oral, os inibidores do cotransportador de glicose e sódio 2. São agentes hipoglicemiantes que impedem a reabsorção de glicose no túbulo proximal.

Diagnóstico
Sinais e sintomas
Incluem os sintomas típicos de hiperglicemia, como poliúria, polidipsia e perda de peso. São em geral encontrados por vários dias antes do desenvolvimento da cetoacidose. Fraqueza, náusea, vômito e dor abdominal são também encontrados - a última sem causa bem elucidada.

Ao exame físico, revelam-se sinais de desidratação, como perda do turgor da pele, membranas mucosas secas, taquicardia e hipotensão. O estado mental pode variar do alerta total até à letargia profunda; mas cerca de 20% dos pacientes são hospitalizados com perda da consciência. Hálito cetônico e respiração de Kussmaul são presentes em especial nos pacientes com acidose metabólica severa.

Achados laboratoriais
O achado crucial é uma elevação da concentração de corpos cetônicos totais circulantes (exame que não é extremamente disponível, sendo por vezes a cetose inferida pela cetonúria). Ainda, como a doença é caracterizada pela tríade cetose, acidemia e hiperglicemia, esses dois últimos achados também são importantes na investigação laboratorial. Glicemia acima de 250 mg/dL, pH menor que 7,3 e bicarbonato sérico menor que 15 mEq/L.

O acúmulo de cetoácidos como o beta-hidroxi-butirato resultado em acidose metabólica com aumento de anion gap [Na - (Cl + HCO3].

Outros achados laboratoriais que auxiliam na investigação incluem a leucocitose com desvio à esquerda (sugerindo uma infecção bacteriana); sódio corrigido (frequentemente, há hiponatremia) e hipercalemia (fluxo de K+ do intra pro extracelular devido a fatores como a acidemia). A correção do sódio é feita adicionando-se 1.6 mg/dL a cada 100 mg/dL de glicose acima de 100 mg/dL. Demais eletrólitos, fósforo, magnésio, pH venoso, creatinina, ureia e glicose devem ser medidos a cada 4 horas. E glicemia capilar a cada 1 - 2 horas.

Tratamento
Em linhas gerais, o tratamento requer frequente monitorização dos pacientes, correção da hipovolemia e da perturbação metabólica, além da busca diligente pelo fator precipitante.

Fluidoterapia
Os pacientes com cetoacidose tem depleção de fluidos e necessitam de ressuscitação volêmica agressiva para restaurar o volume intravascular e a perfusão renal. Em geral, solução salina isotônica pode ser infundida a 500 - 1000 mL/hora durante as primeiras 2 horas. Depois da correção da depleção intravascular, a infusão deve ser reduzida a 250 mL/hora.

Uma vez que a glicemia atinga 250 mg/dL, o fluido de reposição deve conter 5 a 10% de dextrose.

Insulinoterapia
A insulina tem efeito hipoglicemia por aumentar a utilização periférica de glicose e ao mesmo tempo reduzir a produção hepática de glicose. Ao mesmo tempo, inibe a lipólise e, portanto, produção de ácidos graxos para a geração de corpos cetônicos. Dessa forma, a insulina age em grandes problemas do paciente com cetoacidose - a hiperglicemia, a acidemia e a cetose.

A droga de escolha é a insulina regular ofertada intravenosa. A recomendação da Associação Americana de Diabetes é do uso de uma dose inicial em bolus de insulina regular a 0,1 unidades / kg seguida de infusão contínua de 0,1 unidades/kg/hora até que a glicemia atinja 250 mg/dL.

Com a glicemia abaixo de 250 mg/dL, é recomendada a adição de dextrose aos fluidos intravenosos e a insulina deve ser dada a concentração de 0,05 unidades/kg/hora. Diz a Associação Americana de Diabetes que:
Portanto, a velocidade da administração de insulina deve ser ajustada para manter a glicemia a aproximadamente 150  a 200 mg/dL - e continuada até a resolução da cetoacidose. A resolução da hiperglicemia leva cerca de 4 a 6 horas, mas a resolução da cetoacidose dura mais tempo, aproximadamente 10 a 14 horas; assim a dextrose é necessária para manter a infusão contínua de insulina e prevenção da hipoglicemia.
Injeções subcutâneas de análogos rápidos de insulina também são alternativas factíveis no manejo da cetoacidose.

Potássio
A maior parte dos pacientes apresentam-se com níveis normais de potássio. Após a instituição da fluidoterapia e da insulinoterapia, a concentração de potássio extracelular invariavelmente cai. A insulina estimula a captação periférica de potássio, daí tornando necessária a administração de potássio para a prevenção de hipocalemia.

O objetivo é manter a calemia dentro de valores entre 4 e 5 mEq/L. Preocupa um paciente que já apresente hipocalemia à admissão. Ela pode ser agravada após o início da insulina. É por conta disso que, caso a concentração inicial de potássio seja igual ou menor que 3 mEq/L, a reposição de potássio deve ser realizada por ao menos 1 a 2 horas antes da insulinoterapia.

Bicarbonato
Raramente é usado bicarbonato. Vários estudos falharam em evidenciar benefícios, mesmo com valores de pH arterial entre 6,9 e 7,1. Ainda assim, em casos de acidose metabólica severa (pH arterial < 6,9), recomenda-se a adição de 44,6 mEq de bicarbonato por litro de soro fisiológico hipotônico.

Fosfato
Raramente, é utilizado, pois estudos evidenciaram poucos benefícios em sua aplicação - e até efeitos danosos, como hipocalcemia.

Prevenção
O risco de hospitalização futura por emergências hiperglicêmicas pode ser reduzida por meio da educação do paciente. O médico deve explicar ao paciente a importância da manutenção do tratamento com insulina e sobre o reconhecimento de sinais de risco de evolução para a cetoacidose. Com isso, espera-se prevenir recidivas.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC) - parte 1

Definição
A DPOC é uma patologia caracterizada por sintomas respiratórios e pela limitação do fluxo aéreo (que é medida pela espirometria) - ambos sendo persistentes e progressivos. 

Em sua fisiopatologia (leia mais abaixo), estão envolvidos processos como a bronquiolite e a disfunção mucociliar - que leva ao estreitamento das pequenas vias aéreas, obstruída por muco - e lesões ao parênquima pulmonar, com prejuízos das superfícies de hematose (enfisema). Também, devido à destruição do parênquima, há a perda da adesão dos alvéolos às vias aéreas - o que determina prejuízos ainda maiores à troca gasosa.

Além de ter tratamento, a DPOC pode ser prevenida. As alterações patológicas acima são de origem inflamatória - promovidas pela interação entre fatores ambientais (exposição a partículas e gases nocivos, como os do cigarro) e fatores genéticos.

Epidemiologia e o fardo da doença
A DPOC ocupa o quinto lugar entre as principais causas de morte no Brasil - ela ocupa a liderança na mortalidade por doenças respiratórias. Seu fardo social e econômico também é grande, ao considerarmos a quantidade de internações por DPOC por ano e o absenteísmo no trabalho. A prevalência tende a aumentar - com a exposição cada vez maior aos fatores de risco, o envelhecimento populacional e a mortalidade reduzida por doenças infecciosas e cardiovasculares.

Apesar disso, a DPOC é prevenível com medidas como a cessação do tabagismo, como já foi pontuado. Por esse e outros motivos, o tabagismo é considerado um problema de saúde pública.

Pacientes com DPOC apresentam uma redução da capacidade de se exercitar, além de perderem a força dos músculos respiratórios. No tratamento, são empregados corticoides e broncodilatadores. Nas complicações infecciosas, antibióticos também são necessários. Em crises de agudização, oxigenioterapia e ventilação mecânica são usados - novamente, com grande impacto social e econômico.

Fatores que influenciam o desenvolvimento e a progressão da doença
A cessação do tabagismo pode evitar a instalação de DPOC e também melhorar a qualidade de vida dos portadores. É verdade que não-fumantes também podem ter DPOC - mas nesse caso a doença é mais branda, com menos sintomas e menor impacto na qualidade de vida. 

Fatores genéticos estão envolvidos, também: por exemplo, menos de 50% dos fumantes desenvolvem DPOC, o que mostra que é necessária a interação entre fatores ambientais e genéticos. O gene mais associado ao DPOC é o da alfa-1 anti-tripsina (inibidor de protease, circulante no organismo). Ele está "defeituoso" nos pacientes com DPOC.

O status socioeconômico também é um fator de risco, pois interfere no desenvolvimento e maturação pulmonar. A exposição ocupacional à fumaça derivada da queima de combustíveis fósseis também é outro fator. 

Patologia
A DPOC é uma doença marcada pela inflamação - tanto sistêmica quanto mais propriamente do aparelho respiratório. Células inflamatórias (como macrófagos, neutrófilos; e eosinófilos em pacientes asmáticos) aumentam em número no parênquima, na vasculatura pulmonar e nas vias aéreas. 

Elas liberam mediadores inflamatórios, promovendo dano tecidual, que é constantemente reparado. A reparação contínua pode levar à fibrose tecidual. O estreitamento das vias aéreas por essa resposta inflamatória determinam uma redução do VEF1 (volume expiratório forçado em 1 segundo, avaliado na espirometria).

A resposta inflamatória é comum em resposta a irritantes como as partículas do cigarro, mas só que é mais intensa em pacientes com DPOC. Com isso, há estresse oxidativo local no aparelho respiratório, especialmente durante as crises (exacerbações). 

Também ocorre um desequilíbrio na proporção de proteases/anti-proteases, favorecendo um acúmulo de proteínas que degradam tecido conjuntivo, contra as que inibem essa degradação. Essas proteínas chamadas proteases são derivadas de células inflamatórias e contribuem para a destruição do parênquima pulmonar. Isso contribui ainda mais para a limitação ao fluxo de ar e para a redução da hematose.

A limitação periférica persistente ao fluxo de ar (com exsudato e estreitamento de vias) leva a um "aprisionamento" de gases durante a expiração, levando a hiperinsuflação pulmonar. O aumento do volume pulmonar reduz a capacidade de exercício e causa sintomas como dispneia. Além disso, a hematose é prejudicada com a progressão da doença, podendo levar a hipoxemia e hipercapnia. Em geral, o prejuízo da hematose piora com o passar do tempo, com característica retenção de dióxido de carbono.

Em alguns pacientes, há uma proliferação de células caliciformes, devido à irritação crônica do epitélio por partículas tóxicas. Essas células, junto de glândulas da submucosa, aumentam sua atividade, levando à hiperssecreção de muco leva à tosse produtiva crônica. É a bronquite crônica.

As crises de DPOC podem ser promovidas por infecções respiratórias, seja de vírus ou bactérias, poluentes ambientais e outros fatores. Durante as exacerbações dos sintomas respiratórios, há cada vez mais hiperinsuflação pulmonar e aprisionamento de ar, com fluxo respiratório reduzido - causando dispneia.

Diagnóstico e avaliação inicial
DPOC é um diagnóstico que deve ser pensado em qualquer paciente com: dispneia, tosse crônica e produção de muco e/ou histórico de exposição a fatores de risco para a doença (tabaco, poluentes, exposição ocupacional). 

Nesse cenário (sintomas e história sugestivas), a espirometria é necessária para a conclusão diagnóstica. DPOC é confirmado quando há uma VEF1/CVF <0.70 mesmo após uso do broncodilatador (obstrução persistente).

Sintomas
Dispneia: é o sintoma cardinal da DPOC, caracteristicamente crônica e persistente. Pacientes costumam descrever como necessidade de maior esforço para respirar.

Tosse: a tosse crônica é muitas vezes o primeiro sintoma. Pode ser intermitente no início, mais tarde se tornando persistente. Pode ser produtiva ou não.

Produção de muco: se ocorre por três meses ou mais em dois anos consecutivos, pelo menos, encaixa-se na definição clássica de bronquite crônica. Muco purulento reflete aumento de mediadores inflamatórios e pode indicar quadro de exacerbação bacteriana.

Sibilos e opressão torácica: sibilos inspiratórios e expiratórios podem estar presentes na ausculta. Opressão torácica muitas vezes ocorre depois de esforço físico e é uma sensação de origem muscular (fadiga da musculatura intercostal). Sua ausência não exclui diagnóstico de DPOC, nem sua presença indica diagnóstico de asma.

Outras: fadiga, perda de peso e anorexia são  problemas comuns em pacientes com DPOC severo ou muito severo. Doenças consumptivas devem ser investigadas. Ansiedade e depressão também podem estar presentes, posto que a doença tem grande impacto funcional e na qualidade de vida.

História médica
Deve incluir:
  • Exposição a fatores de risco - como tabaco e poluentes.
  • História patológica pregressa - incluindo asma, rinite, sinusite, outras doenças crônicas - comorbidades que também causem restrição de atividade. Internações ou crises (agravamento de sintomas) prévios.
  • História familiar de DPOC ou de outra doença respiratória
  • Padrão dos sintomas: quando os sintomas começaram (geralmente, na vida adulta), evoluíram, sua intensidade, restrições sociais impostas pelos sintomas.
  • Impacto da doença na qualidade de vida do paciente (trabalho, exercício físico, rotina familiar, atividade sexual...)
  • Possibilidade de reduzir os fatores de risco
Exame físico
Raramente, leva a diagnóstico de DPOC. Os sintomas de limitação de fluxo de ar geralmente só se apresentam em quadros severos.

Espirometria
É a medida mais confiável de restrição ao fluxo de ar. A espirometria deve medir o volume de ar forçadamente expirado da inspiração máxima do paciente - a capacidade vital forçada, CVF e o volume de ar expirado no primeiro segundo dessa manobra - volume expirado forçado em 1 segundo, VEF1 e a razão dessas duas medidas (VEF1 / CVF). Os valores são comparados com aqueles esperados conforme a idade, sexo, altura e etnia do paciente.

O VEF1/CVF em pacientes com DPOC é menor que 0,7. Indica um padrão obstrutivo persistente, isto é, mesmo após teste com uso do broncodilatador.

Avaliação do paciente
Os objetivos, a fim de guiar a terapia, são avaliar o nível de limitação do fluxo de ar (pelos valores da espirometria), os impactos na saúde do paciente e o risco de eventos futuros (crises, internações ou óbito)

Classificação da intensidade de limitação do fluxo de ar:
  • GOLD 1 - VEF 1 > 80%  - leve
  • GOLD 2  - VEF 1 entre 50 a 80% - moderada
  • GOLD 3 - VEF 1 entre 30 e 50% - grave 
  • GOLD 4 - VEF 1 menor que 30% - muito grave

Classificação dos sintomas:
Há o COPD Assessment Test, que avalia com pontuações de 0 a 5 vários sintomas (como tosse, secreção de muco, qualidade do sono, níveis de energia, opressão torácica, atividades sociais e rotineiras, atividade física...).

Avaliação dos riscos de exacerbação:
Exacerbação é definida como uma piora aguda dos sintomas respiratórios que exige terapia adicional. São classificadas em: leve (necessitando de broncodilatador de curta duração [SABA]), moderada (tratada com SABA e antibióticos e/ou corticosteroides orais) e grave (que requer hospitalização ou visita à emergência). As exacerbações graves também podem levar à falência respiratória aguda.

O melhor preditor de exacerbações frequentes (definidas como duas ou mais num ano) é histórico desses eventos já tratados. A piora da função pulmonar também é associada com maior prevalência de exacerbação; e hospitalização é associada com pior prognóstico de DPOC.

Avaliação das comorbidades:
Muitas vezes, os pacientes com DPOC apresentam outras doenças crônicas. O próprio DPOC é associado a sintomas extrapulmonares importantes - como disfunção da musculatura esquelética, devido ao sedentarismo e a problemas nutricionais. Comorbidades incluem doenças cardiovasculares, síndrome metabólica, osteoporose, depressão, ansiedade e câncer de pulmão. As comorbidades devem ser tratadas independentemente.

Avaliação combinada do DPOC:
É feita em ABCD (que correspondem à: intensidade/impacto dos sintomas e risco de eventos futuros) e 1234 (que correspondem à classificação GOLD de limitação do fluxo de ar).

Por exemplo: paciente GOLD A - com VEF 1 > 80%, com 0 ou 1 exacerbação sem ida ao hospital. GOLD D - paciente com VEF 1 < 30%, com 2 ou mais exacerbações ou com ida ao hospital.

Interleucina-18 como marcador de necrose tubular aguda

Aumentos da creatinina sérica são comumente empregados na prática hospitalar para registrar a lesão renal aguda. Elevação maior que 0,3 mg/dL em até 48 horas é um dos critérios para o diagnóstico da doença, que tem como uma das principais causas a necrose tubular aguda isquêmica.

Apesar disso, a creatinina sérica é pouca específica e sensível, o que alimenta a busca por melhores biomarcadores. Um dos apontados é a interleucina-18. Estudos em camundongos demonstraram que a protease pró-inflamatória caspase-1 catalisa a formação de interleucina-18 na lesão renal aguda isquêmica. 
A caspase-1 é responsável por catalisar a formação de interleucina-18, que age nas células tubulares renais

É provável que esse mediador seja responsável por alguns danos renais observados na doença. Por exemplo, os pesquisadores apontam que a neutralização dessa citocina reduz o acúmulo tecidual de neutrófilos. A IL-18 medeia a inflamação em modelos de artrite, danos pulmonares e doença intestinal inflamatória. Outro exemplo, na isquemia miocárdica, a neutralização da IL-18 é associada com melhor força de contração cardíaca.

Tendo isso em vista, cientistas analisaram se em pacientes com necrose tubular aguda, isso também seria observado. Compararam a medida de IL-18 em amostras de urina com a de pacientes com outras patologias agudas ou crônicas renais, além de controles saudáveis.

Os resultados foram promissores. Em pacientes com necrose tubular aguda, os níveis de IL-18 na mediana dos pacientes estavam massivamente aumentados, atingindo significância estatística, comparado com pessoas saudáveis e aqueles com outras causas de doença renal, como azotemia pré-renal ou insuficiência renal crônica, como mostra o gráfico abaixo:

A interleucina-18 urinária, portanto, teve excelente poder discriminatório em atestar necrose tubular aguda em pacientes. Um marcador precoce de lesão renal é desejável pois permite uma atuação mais oportuna para evitar danos maiores (com a cessação de drogas nefrotóxicas, ajuste medicamentoso e cuidado com fluidos). "A aplicação clínica desse teste pode ser substancial porque é confiável, barato, e fácil de executar", disseram os autores.

O estudo foi publicado em 2004 no American Journal of Kidney Diseases. Leia aqui.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Taurina pode ter efeito protetor na necrose tubular aguda tóxica

Efeito protetor da taurina contra necrose tubular aguda induzida por gentamicina
Taurina é um aminoácido encontrado em quase todos os tecidos. Ela tem um efeito antioxidante em sistemas biológicos - por exemplo, estabiliza as biomembranas e neutraliza as espécies reativas de oxigênio. 

Antibióticos aminoglicosídeos, usados para combater infecções por bactérias gram-negativas, são nefrotóxicos. As células tubulares tem a capacidade de concentrar altas quantidades de gentamicina, sendo internalizada por essas células. Isso leva à injúria e morte de células do córtex renal. 

Um dos supostos mecanismos pelo qual esse dano se estabelece é a produção de radicais livres. Nesse sentido, a taurina foi investigada como agente protetor contra os danos renais induzidos por gentamicina, por um estudo publicado em 2000.

Testes feito em ratos demonstrou que a taurina inibiu o acúmulo de gentamicina nos rins. Além disso, impediu o aumento da concentração sérica de creatinina e de ureia, evidenciando preservação de função renal. A gentamicina produziu aumento de lactato, indicativo de hipóxia - o que também foi revertido pela taurina. Enzimas antioxidantes também caíram após o tratamento com gentamicina. A taurina novamente exerceu efeito protetor, algo também comprovado pelo histopatológico.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Necrose Tubular Aguda

Por que esse assunto é importante?
A lesão renal aguda ocorre em 30% dos pacientes hospitalizados em UTI. A principal causa por trás da lesão renal em UTI, acredita-se, é a necrose tubular aguda (NTA) - representa cerca de 80% dos quadros da doença.

O que é a Necrose Tubular Aguda?
Entre as definições, autores empregam critérios similares aos da síndrome de lesão renal aguda: uma redução da função renal a valores incompatíveis com a manutenção da homeostase. Ou seja, travam-se atividades como taxa de filtração glomerular e da regulação ácido-básica e hidroeletrolítica.

A definição apoia-se principalmente em um parâmetro diagnóstico: um aumento de um produto nitrogenado, a creatinina sérica, com elevação de ao menos 0,3 mg/dL em 48 horas;.além de decréscimos no débito urinário.

Contudo, isso não é suficiente para diferenciar as causas de lesão renal aguda. A Necrose Tubular Aguda cursa com lesões anatômicas no parênquima renal, especialmente nos túbulos renais. É a consequência de distúrbios hemodinâmicos ou inflamatórios.

Diagnósticos diferenciais
Importante aqui é ter em mente diagnósticos diferenciais, que também pintam o mesmo quadro de lesão renal aguda, com oligúria ou anúria e retenção de escórias nitrogenadas. A saber, há a azotemia pré-renal, situação em que todo o aparelho renal é anatomicamente íntegro, mas há problemas funcionais, como hipovolemia e oferta inadequada de sangue ao rim.

Pode ser precipitada pelo débito cardíaco comprometido por uma insuficiência cardíaca, por exemplo. Pelo rim, passam 20 a 25% do débito cardíaco - e é essa grande perfusão renal que mantém a filtração glomerular.

Também temos como etiologia as iatrogenias, como em pacientes em uso de AINEs e de inibidores da enzima conversora de angiotensina, por exemplo. Nesse último casos, tais fármacos perturbam os mecanismos de regulação do tônus da vasculatura da artériola aferente e eferente.

Uma obstrução do fluxo urinário pós-renal também é outra explicação - em especial, no caso da hiperplasia prostática benigna, acometendo homens idosos. Calculose renal em rim único também pode determinar anúria. Tumores são outra possibilidade diagnóstica. Nesses casos, a lesão anatômica ao rim, se existir, é consequência da obstrução. Por fim, vasculites, glomerulonefrite e nefrite intersticial aguda - que entram como "causas intrínsecas" - também devem compor a investigação diagnóstica em pacientes com lesão renal aguda.

Diagnóstico
Como já visto, a lesão renal aguda é diagnosticada por avanços da concentração sérica de creatinina (com elevação maior que 0,3 mg/dL em 48 horas).

Em estados pré-renais, em que há uma redução da perfusão renal, mas com preservação das funções tubulares, há baixa concentração de sódio urinário, aumento da razão urina/plasma de creatinina. A disfunção tubular, um continuum da hipoperfusão pré-renal, leva a um aumento da concentração de sódio urinário. Outro marcador diagnóstico é a presença de sedimentos urinários na urinálise (como o de células renais epiteliais tubulares).


Além dos estudos laboratoriais, o diagnóstico deve se basear em dados da história do paciente e em seu exame físico.

Etiologia
Necrose Tubular Aguda Séptica
Sepse é a principal causa de Necrose Tubular Aguda em pacientes internados na UTI - responde a mais de 50% dos casos, segundo alguns autores. Infelizmente, muitos casos tem desfechos fatais na sepse severa e no choque séptico, mesmo com investidas terapêuticas.

Em grande parte, isso se deve a lacunas em nosso conhecimento sobre a patogenia da necrose tubular aguda séptica - devido aos riscos associados com a biópsia renal. Modelos animais fornecem algumas pistas: assim como nos choques hemorrágico e cardiogênico, o choque séptico também pode conduzir a lesões isquêmicas por conta de uma redução do fluxo sanguíneo renal.

Com isso, o resultado não é somente uma queda da taxa de filtração glomerular, com resultante azotemia. Outro desdobramento grave é a privação de nutrientes às células tubulares, conduzindo a uma depleção das reservas de fosfato. Como consequência final, há o estado de necrose.

Contudo, a necrose tubular aguda pode existir mesmo em casos de choque séptico hiperdinâmico - em que o fluxo renal não está comprometido. Portanto, mecanismos não hemodinâmicos também podem ter um papel importante nos danos a células tubulares. Uma das vias apontadas como pivô é a inflamatória.

Como se sabe, a sepse é caracterizada por uma enxurrada de citocinas inflamatórias (como o TNF), substâncias vasoativas e agentes trombogênicos. Esse mix de mediadores podem provocar cascatas que conduzem a necrose e apoptose de células renais.

Necrose Tubular Aguda Isquêmica
Isquemia é uma importante causa de lesão renal intrínseca. Por exemplo, cerca de 30% dos pacientes que são ressuscitados por parada cardiorrespiratória desenvolvem lesão renal aguda. A isquemia corporal total leva a lesões tubulares. Há ampla evidência que a supressão da oferta de oxigênio é acompanhada por cascatas inflamatórias que contribuem a essa injúria renal.

Apoptose celular, influxo de neutrófilos, adesão endotelial de leucócitos, interação entre células tubulares e inflamatórias, ativação do complemento, perda da integridade da borda em escova e outras alterações medeiam o extermínio da função renal.

Necrose Tubular Aguda Tóxica
Agentes nefrotóxicos podem provocar lesão das células tubulares dos rins diretamente. Por exemplo, antibióticos aminoglicosídeos como a gentamicina e agentes quimioterápicos como a cisplastina causam toxicidade tubular. Radiocontraste e anfotericina B também são mediadores de lesão tubular.

Tratamento
O tratamento de pacientes com lesão renal aguda ou risco de desenvolvê-la - genericamente - tem como pilar uma atenção cuidadosa ao estado hemodinâmico e a restauração da homeostasia. Hipotensão severa e sustentada, que ocorre na azotemia pré-renal, pode acabar levando a uma lesão intrarrenal (como conferimos, a Necrose Tubular Aguda Isquêmica).

A administração de fluidos - com preferência por cristaloides, na ausência de choque hemorrágico - é instituída na tentativa de expandir o volume intravascular. Isso, muita vezes, pode prevenir avanços na lesão renal, ou permitir a sua regressão. Pacientes com queimaduras extensas e pancreatite (com grande perda plasmática), ou em hemorragias são candidatos à solução salina a 0,9%. Reposição volêmica vigorosa deve ser feita em casos de rabdomiólise.

Hipovolemia menos grave pode ser tratada com solução salina hipotônica, a 0,45%. Além disso, alguns pacientes necessitarão de concentrado de hemácias.

Em caso de hipervolemia - que pode ser fatal devido a edema agudo de pulmão, por exemplo - o uso de diuréticos pode ser apropriado, acompanhado da redução do aporte de líquidos e sódio.

Se o volume já foi restaurado, mas ainda há paralisia vasomotora, o uso de infusão contínua de noradrenalina em conjunto pode melhorar parâmetros da função renal, como o clearance de creatinina. Tal abordagem é especialmente útil em contexto de choque hipovolêmico e choque séptico.

Também podemos pensar em pacientes com síndrome cardiorrenal - em que o coração bombeia com menos força e, portanto, o rim é menos perfundido, levando à azotemia. Esses pacientes necessitarão, por exemplo, de agentes inotrópicos, anti-arrítmicos ou recursos como balão intra-aórtico.

O e sucesso terapêutico pode ser avaliado por aumentos nos valores pressóricos (média maior a 65mmHg), débito urinário maior ou igual a 0,5mL/kg/h e perfusão de oxigênio.

As complicações, no cenário de lesão renal aguda, também merecem avaliação e cuidadoso seguimento. Entre os objetivos, estão a prevenção de excesso de fluidos, prevenção de hipercalemia e acidose metabólica (por exemplo, evitando-se excessos na infusão de solução cristaloide, que pode causar uma acidose metabólica hiperclorêmica), o ajuste de dosagem de medicamentos conforme a taxa de filtração glomerular, além da descontinuação de drogas potencialmente nefrotóxicas, sempre que possível. Demais distúrbios hidro-eletrolíticos devem ser corrigidos.

Cuidadoso controle glicêmico também é importante. O uso de insulina para atingir a euglicemia pode melhorar o prognóstico em pacientes graves, evitando a hiperglicemia por estresse. Além disso, na sepse, a insulina possui efeito anti-inflamatório.

A terapia dialítica deve ser instituída quando houver indicação. Uso de manitol e de diuréticos deve ser evitado.

Prognóstico
Mesmo depois de lesão renal aguda grave, necessitando de diálise, são grandes as chances de recuperação renal. Porém, em longo-prazo, são pacientes que tem mais chances de evoluir para doença renal crônica e devem ser acompanhados cuidadosamente por um nefrologista.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Psicose


Psicose é uma perturbação mental que dificulta discernir o que é real ou não, com delírios (crenças fixas e falsas) e alucinações (perturbações dos sentidos).

As alucinações podem afetar os cinco órgãos do sentido:
  • alucinações táteis (insetos, em pacientes alcoólatras em abstinência, com delirium tremens);
  • alucinações visuais, como em pacientes com hiperuremia; 
  • alucinações auditivas em esquizofrenia, por exemplo 
  • alucinações olfativas (por vezes, ocorrem em pacientes com depressão)
Pode ocorrer em:
  • Esquizofrenia
  •  Transtorno psicótico devido a uma condição médica geral – por exemplo, em UTIs, na insuficiência renal aguda, com hiperuremia e consequente confusão mental. 
  • Transtorno psicótico induzido por substância – maconha, LSD
  • Transtorno esquizoafetivo – "mistura" da esquizofrenia e da afetividade do transtorno bipolar (diagnóstico difícil, reservado ao especialista) 
  • Transtorno esquizofreniforme – de um a seis meses, “um pé na esquizofrenia” 
  • Transtorno psicótico breve – até um mês para remissão e retorno ao funcionamento pré-mórbido.
  • Transtorno delirante – apenas delírios.
  • Transtorno do humor com aspectos psicóticos – depressões psicóticas (alucinação com ouvir mortos, sentir cheiro da morte...) ou euforias psicóticas (grandeza, megalomania), em transtorno bipolar tipo 1.
Esquizofrenia 
Marcada por falta de insight (percepção, olhar para dentro, noção de si próprio), sinais pré-delirantes ou pré-mórbidos (retração social, crianças em lar desajustado, ideias de auto-referência, perplexidade), delírios, alucinações, agitação psicomotora. 

1 por cento da população tem esquizofrenia, idade de alto risco é de 20 a 39 anos.

Mais cedo e mais grave nos homens. Nas mulheres, há muitos sintomas afetivos (justamente por começarem mais tarde, neuroplasticidade). 

É muito comum haver história familiar positiva. 

Formas ou subtipos de esquizofrenia
Paranóide – delírios persecutórios, alucinações auditivas (vozes de comando ou vozes que falam entre si)... É a forma mais clássica e a mais comum. 

Hebefrênica – é a mais grave, porque aparece mais cedo. O paciente é infantilizado. Grande desagregação do pensamento, agitação psicomotora desordenada e bizarra acompanhada de risos imotivados e falta de crítica, que demonstram o caos interno vivenciado. 

Catatônica – hipercinesia catatônica (agressividade), parada/esturpor catatônica. Flexibilidade cérea.

Indiferenciada – forma mista

Residual – sintomas demenciais por conta de história prolongada de esquizofrenia (embotamento afetivo, indiferença ao luto, por exemplo, ou emoção incongruente com as situações). 

Sintomas positivos:
Delírios
Alucinações
Agitação psicomotora, alterações psicomotoras
Alterações do discurso: neologismo (invenção de palavras) 

Sintomas negativos:
Retração social 
Embotamento afetivo 
Lentificação psicomotora 
Anedonia 
Apraxia 

Fisiopatologia Aumento da transmissão de dopamina em vias dopaminérgicas. Sobrecarregamento dopaminérgico em redes neurais específicas. 

Fatores de risco 
Idade: adolescência e início da idade adulto (uso de substâncias). 
Personalidade vulnerável (esquizóide, esquizotípica), histórico familiar.
Estados: eventos vitais, estresse psicossociais, abuso de drogas, alterações funcionais e subjetivas na pessoa. 

Sinais e sintomas: 
Perda de energia 
Percepção de que as coisas ao redor estão alteradas 
Crenças incomuns 
Obsessão religiosa, comportamento diferente do habitual. 

Diagnóstico
De 2 de 5 presentes: ideias delirantes, alucinações, linguagem desorganizada, comportamento catatônico, sintomas negativos – por seis meses. 

Prognóstico, manejo e tratamento:
  • É uma doença incurável. O objetivo do tratamento é atingir o insight – atingir a autocrítica; seja por meio de psicofármacos, TCC ou orientação familiar (manutenção da afetividade). 
  • Ganhar a confiança do paciente – estabelecimento de uma aliança terapêutica, especialmente se fora da crise. Em crise, pode-se considerar participação nas ideias delirantes. 
  • Promover a adesão terapêutica (observar efeitos colaterais). 
  • Dar segurança ao paciente – mas não ofertar falsas esperanças 
  • Considerar o trauma de estar psicótico – quando o paciente retoma insight, o paciente pode se ver incapacitado. 
  • Envolvimento familiar 
  • Empregar psicoeducação para auxiliar a conviver com o problema. 


Dificuldades no diagnóstico
 Não há sinal ou sintoma patognomônico, sempre é importante investigar transtornos orgânicos e outras causas secundárias. Os sintomas podem mudar com o tempo. Levar em conta o nível socioeducacional, nível intelectual e afetivo. 

Diagnóstico diferencial Outros quadros psicóticos, já citados – além de transtornos invasivos do desenvolvimento (por exemplo, TEA). 

Fatores de bom prognóstico
Início tardio
Fatores precipitantes conhecidos (por exemplo, uso de drogas) 
Início agudo
Casado
Sintomas de transtorno de humor (preservação da afetividade)
Sintomas positivos – ausência dos sintomas negativos

Tumores urológicos


TUMORES UROLÓGICOS
 CÂNCER DE BEXIGA
·         Câncer urotelial papilífero.
·         Para diagnóstico, citoscopia e biópsia
·         Clínica de hematúria micro ou macroscópica. Urgência urinária, polaciúria.
Fatores de risco: homem, maior de 60 anos, tabagista, derivados de petróleo.

Paciente, masculino, 79 anos, hematúria indolor macroscópica, há 9 meses. H.A.S controlada, tabagista

Qual diagnóstico? Como chegar a ele? Tumor de bexiga. Quadro clínico sugestivo, TC com contraste. Cistoscopia.

Qual tipo histológico? Quais fatores de risco? Células uroteliais (que são presentes em todas as vias urinárias – pelve, cálice, ureter e bexiga). Idade, tabagismo, alguns corantes, derivados de petróleo.

Qual tratamento? Sonda vesical de três vias para “lavar a bexiga” e retirar coágulos que estejam obstruindo (tratamento de urgência). Ressecção de bexiga (em fase inicial) ou RTU, para ‘raspar’ o tumor. O parâmetro para a retirada da bexiga – cistectomia radical – é o acometimento da muscular da bexiga (que é diagnosticada  por biópsia). Radioterapia, quimioterapia ou cirúrgico, dependendo do estadiamento.

Quais possíveis complicações? Na cistectomia radical, é necessário retirar a próstata – cistoprostatectomia radical. Neobexiga ou derivação a Bricker. Se não tratar, obstrução de vias urinárias e insuficiência renal (hidronefrose e perda de função glomerular). Retenção urinária, infecção de TU, polaciúria, disúria.

Paciente, feminino, 55 anos, lombalgia direita, hematúria macroscópia, massa em flanco direito. Prévia: obesa, diabética, hipertensa, ex-tabagista (parou há 25 anos). Histórico familiar de tia com câncer no trato urinário

Qual diagnóstico? Como chegar a ele?  Neoplasia renal (Carcinoma de células renais). O diagnóstico é incidental. Quadro clínico com tríade clássica: lombalgia direita, hematúria macroscópia, massa palpável. Ressoância magnética, tomografia computadorizada de abdome. Não requer comprovação histopatológica (biópsia) para realizar tratamento.

Qual tipo histológico? Quais fatores de risco? Carcinoma de células claras. Tabagismo (principal), obesidade e H.A.S crônica.

Qual tratamento? Nefrectomia parcial ou radical a depender do estadiamento e presença de metástases. Radioterapia não funciona para esse tumor.

Quais possíveis complicações? A principal complicação no intraoperatória é hemorragia. A nefrectomia parcial tem a intenção de preservar glomérulos e  o paciente não vir a precisar de terapia dialítica. Metástase de pulmão. Necessidade de hemodiálise, polaciúria.

Paciente masculino, 25 anos, previamente hígido, nodulação endurecida na bolsa escrotal há direita. Sem dor, sem trauma.
Qual diagnóstico? Como chegar a ele? Câncer de testículo. Marcadores tumorais (alfa-feto proteína, DHL e HCG), USG escrotal. RX de torax.

Qual tipo histológico? Quais fatores de risco? Carcinoma de células germinativas. São divididos em dois grandes grupos: seminoma e não seminoma. Idade (pacientes jovens). Histórico de criptoquirdia (testículo fora da bolsa escrotal), radiação, história familiar. Lesões e traumas na bolsa escrotal.

Qual tratamento? Orquiectomia parcial ou radical, a depender do estadiamento. Acesso via inguiectomia (similar à incisão de uma hérnia).

Quais possíveis complicações? Neotumor. Não dá disfunção erétil, nem redução dos níveis de testosterona. Possibilidade de infertilidade em caso de quimioterapia. Histórico familiar, lesão ou trauma escrotal.

CÂNCER DE PÊNIS
Paciente masculino, 42 anos, tabagista, etilista, morador de rua, queixa de vegetação/ulceração na glande há 4 meses, evolutivo. Histórico de fimose.
Qual diagnóstico? Como chegar a ele? Câncer de pênis. História clínica sugestiva (fatores de risco presente +, caráter evolutivo); exame físico com lesão sugestiva em glande; biópsia com análise anatomohistopatólogica.

Qual tipo histológico? Quais fatores de risco? Carcinoma epidermoide de células escamosas. Tabagista, etilista, má higienização, fimose, história sexual (promiscuidade, sexo sem camisinha), HPV.

Qual tratamento? Tem que retirar a lesão. Retirada parcial da lesão (penectomia parcial ou total), linfadenectomia inguinal bilateral, quimioterapia se metástase.

Quais possíveis complicações? Metástases, necrose da artéria femoral.

Fisiopatologia da anemia falciforme


A anemia falciforme é uma doença hereditária, monogênica, autossômica recessiva.

Mutação genética
A doença desenvolve-se a partir de uma alteração na codificação do gene da hemoglobina. A partir dessa mutação, é produzida uma hemoglobina com prejuízo em sua função de carregar oxigênio aos tecidos.

Em específico, a alteração molecular primária é a substituição de uma única base nitrogenada (adenina por timina) no códon 6 do gene da globina beta, que compõe a estrutura da hemoglobina. Devido à essa mutação, nos desdobramentos da síntese proteica da hemoglobina, há a substituição do aminoácido ácido glutâmico (naturalmente presente) por valina.

           Polimerização da hemoglobina
A consequência final é a produção de uma hemoglobina anormal (chamada HbS). Essa proteína anormal, quando está na forma desoxigenada, isto é, sem carrear oxigênio, é relativamente insolúvel. Tende a se agregar (unir-se por ligações covalentes), formando longos polímeros, no interior das hemácias.

            Falcização das hemácias
Isso altera a forma do eritrócito, de disco bicôncavo, para o de uma foice. Também reduz acentuadamente a deformabilidade da hemácia. A alteração também pode promover lesões em suas membranas. Daí, mesmo quando a hemoglobina é reoxigenada, os eritrócitos podem reter o formato anormal, denso e rígido.

            Vaso-oclusão
Essas alterações morfológicas (falcização das hemácias) contribuem para a vaso-oclusão na microcirculação. Isso gera isquemia, reperfusão e também dano às células endoteliais. Também há hemólise e liberação intravascular de hemoglobina. 

Hemácias em formato de foice ocluindo vasos

Todos esses danos engatilham respostas inflamatórias vasculares, com estresse oxidativo, expressão de proteínas com função adesiva (integrinas, por exemplo), liberação de fatores procoagulantes e vasoconstritores. Há ativação leucocitária e elevação dos níveis de citocinas, TNF-alfa e PCR. Essa cascata contribui para a redução do fluxo sanguíneo aos tecidos.

O resultado final é a adesão de hemácias, leucócitos e plaquetas ao endotélio e à parede vascular, reduzindo o fluxo sanguíneo e, portanto, levando à vaso-oclusão e isquemia tecidual. Em resumo, a anemia e, principalmente, a oclusão vascular são responsáveis pelas manifestações clínicas da doença: fadiga, atrasos no desenvolvimento e hipóxia tecidual.

Referências:
ZAGO, MA; FALCÃO, RP; PASQUINI, R. Tratado de Hematologia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Atheneu, 2013. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=1682842

ZAGO, MA; PINTO, ACC. Fisiopatologia das doenças falciformes: da mutação genética à insuficiência de múltiplos órgãos. Rev. Bras. Hematol. Hemoter. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbhh/v29n3/v29n3a03.pdf

Estudo de caso: maus-tratos na infância

Caso clínico*
04 de dezembro de 2018

Identificação
A.J.J., sexo feminino, 2 anos e 11 meses.

Queixa principal
Maus-tratos

História da doença atual
Tios relatam que há 5 dias a paciente compareceu a uma Unidade Básica de Saúde, pois a mãe relatava uma “alergia”. A paciente apresentava edema e equimose periorbitária (sinal de Guaxinim), edema de região cervical e  occipital, e confusão mental. Na unidade, foi encaminhada pelo SAMU ao pronto-atendimento. Evoluiu com rebaixamento do nível de consciência, necessitando de uma intubação orotraqueal e sedação. Glasgow = 8,  com hipótese diagnóstica de TCE secundário a maus-tratos.




Encaminhada ao Hospital Regional para avaliação de neurocirurgião e realização de tomografia computadorizada. A paciente não tinha alterações dignas de nota ao exame (“sem inchaço” [sic]) e não teve indicação cirúrgica. 

“Quadro tomográfico de crânio compatível com discreto aumento de partes moles nas regiões occipital direita e biparietal” (sic em laudo). À gasometria, apresentava acidose respiratória? (pH = 7.29, p CO2 = 47 mmHg, p O2 = 144, BE = - 3,8 mmol/L.

Internada na UTI pediátrica na mesma noite, onde foi mantida em coma induzido e em IOT.

Hemoglobina de 8.7 mg/dL no dia 30/11. Evoluiu com melhora clínica, respiração espontânea e aceitação da dieta. Extubada no dia 01/11. Recebeu alta para a enfermaria ontem. Tios relatam melhora do estado geral e comportamento normal.

Antecedentes patológicos
Tios negam histórico ou suspeita de maus-tratos prévia.

História socioeconômica e familiar
Tem duas irmãs (uma gêmea e uma de 6 anos) de casamento materno prévio. Pai mora em Cuiabá. Mãe iniciou relacionamento com presidiário com tornozeleira eletrônica há 3 meses (sic). Padrasto é tabagista, etilista e usuário de drogas (sic). A mãe está presa, o padrasto é considerado fugitivo da Justiça e a guarda da criança foi transferida para a avó paterna (sic).

Exame físico
Inspeção: BEG, equimose periorbitária, corada, hidratada, ativa e reativa. Humor calmo. Anictérica, acianótica.

Ausculta cardíaca: BRNT em 2T.

Ausculta pulmonar: som claro pulmonar, sem ruídos adventícios, em ambos hemitórax.

Neurológico: reflexo pupilar presente, reflexo de Babinski negativo. Responde a estímulos motores e verbais, riso social presente.

Comentários
Os maus-tratos na infância são um tema prioritário em saúde pública. Parte da preocupação é referente à violência doméstica - aquela praticada no âmago da residência, quase sempre praticada pelos familiares ou responsáveis que deveriam estar imbuídos da proteção da criança. 

Uma das formas é a violência física, que é conceituada pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) como o uso proposital de força física a fim de ferir, lesar ou destruir a criança, podendo deixar ou não marcas visíveis. Muitas vezes, o castigo físico é utilizado como prática pedagógica, a fim de "mostrar quem manda". A solução de conflitos pela força, naturalizada culturalmente, deve ser combatida - a violência pode ter repercussões graves na saúde física e mental da criança.

Estatísticas são difíceis: pelo próprio fato de ocorrer dentro de casa, da incapacidade ou medo da criança em denunciar e devido à dificuldade de muitos pediatras em reconhecer essa forma de violência no atendimento. De acordo com o dr. Mário Hirschheimer, presidente do Departamento Científico de Segurança da SBP:
“Disseminar informações técnicas a respeito do reconhecimento precoce de sinais e indícios de maus-tratos consiste numa ação primordial, visto que a maior parte das crianças não denuncia a violência sofrida. O papel do pediatra é extremamente importante, pois cabe a ele identificar os casos suspeitos e realizar a notificação”.
A notificação refere-se à obrigatoriedade de reportar os casos ao Ministério da Saúde. O reconhecimento, por sua vez, depende da experiência e do nível de suspeição do profissional. É importante questionar se os danos à integridade física são acidentais - o que é relatado, muitas vezes, pelos pais, como "queda da própria altura" ou outros acidentes - ou intencionais (violência física).

Entre os dados da anamnese que podem sugerir a violência física:

  • Incompatibilidade da história relatado pelos pais com os possíveis achados ao exame físico/exames complementares - no relato de caso, por exemplo, os tios contam que mãe buscou o atendimento médico em UBS, mas a queixa ("alergia") era extremamente descabível com os achados de confusão mental, edema periorbitário e edema de partes moles. Em outros casos, trauma acidental é relatado, mas o mecanismo de trauma não condiz com os achados.
  • Omissão total ou parcial de história de trauma - no caso clínico, segundo os tios, houve omissão total de história de trauma.
  • Histórias diferentes quando os membros da família são questionados isoladamente - é útil conversar reservadamente com cada responsável, bem como questionar em detalhes sobre o cenário e mecanismo do trauma.
  • Uso abusivo de drogas por algum dos cuidadores ou por pessoas que morem na mesma casa, conflitos com a lei, violência doméstica (demanda conversar separadamente com os pais) - no caso clínico, mãe e padrasto tem problemas com a Justiça; padrasto tem histórico de abuso de drogas lícitas e ilícitas.
Ao exame físico, entre os achados que sugerem violência física, temos:
  • Lesões em estágios diferentes de cicatrização - muitas vezes, achadas casualmente à radiografia, como por exemplo fraturas consolidadas em fêmur e arcos costais em criança com fraturas recentes em crânio (nas radiografias da foto abaixo, retirada de um estudo de caso).

  • Marcas de objetos
  • Comportamento apático, sinais neurológicos - criança apática e sonolenta, como relatado no caso clínico. 30% das crianças agredidas apresentam traumatismos na cabeça.
  • Lesões em locais não usuais, frequentemente escondidos por peças de roupa.
Como já dito, é obrigatória a notificação dos casos ao Ministério da Saúde. A atuação do Conselho Tuteral, o manejo multidisciplinar dos traumas físicos e emocionais, além de aconselhamento à criança e familiares são fundamentais.

*Caso fictício

Leia mais
Consulte a 2ª edição do “Manual de Atendimento às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência” da SBP para mais informações.