quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Gordura: vilã ou mocinha?

A gordura saturada, segundo as mais recentes pesquisas, não é tão vilã quanto todo mundo diz. A mais letal é uma forma de gordura insaturada. Entenda.

Maiores causas de morte no mundo: doença arterial coronariana e derrame




Placa aterosclerótica limita o fluxo de sangue pelas artérias
Gordura saturada. Gordura trans. Colesterol. Triglicerídeos. Sobre o que você pensa ao ler tais palavras? Se, por acaso, você as associou a doenças, não há como culpá-lo. Os dados são da Organização Mundial da Saúde: a maior causa de morte do mundo é a doença arterial coronariana. O nome rebuscado esconde uma patologia perversa. Geralmente, o processo é esse: as artérias que irrigam o coração começam a ficar "entupidas", principalmente devido à acumulação de partículas responsáveis pelo transporte de colesterol pelo sangue. Resultado: menos sangue chega ao coração. As células do músculo cardíaco sofrem, então, isquemia. Isso significa que elas não mais recebem o oxigênio levado pelo sangue. E o oxigênio é necessário para a produção do ATP que garante o funcionamento delas. Nesse caso, acontece o infarto do miocárdio. O processo também pode acontecer nas artérias que irrigam o cérebro, por exemplo, e então, é chamado de derrame. Essa é a segunda maior causa de morte no mundo.

         Terrível, não é mesmo? Se um dos maiores fatores de risco é o colesterol e gorduras (em um terço das doenças cardiovasculares, ele são os vilões), então a medida correta é evitá-los a todo custo? Vá com calma.

A reserva energética
Formação do adipócito, que armazena gordura

         A verdade é que o corpo precisa de gordura. Por quê? Bom, a primeira paixão do seu corpo é o carboidrato. Trata-se de uma fonte de energia, geralmente, de rápida absorção. Quando sua quebra resulta em glicose, melhor ainda. Essa glicose pode ser facilmente quebrada para gerar energia. O problema é que nossas refeições são separadas por várias horas. Nós não nos alimentos de modo contínuo, mas o corpo está usando energia a todo o momento. Por isso, dependemos de uma reserva. O glicogênio estocado no fígado é uma delas, mas a mais importante é a gordura, que fica armazenada em células gigantes, os adipócitos. A gordura é a nossa segunda maior paixão porque ela é a macromolécula que mais concentra energia: são 9 calorias em 1 grama. Carboidratos e proteínas possuem 4 calorias por grama.

          Se "reserva de energia" não for suficiente para te convencer, a gordura também é a responsável por modelar o corpo. O homem e a mulher possuem maiores concentrações de gordura em locais distintos e isso explica em parte a diferença de contorno entre os dois sexos. A gordura também nos protege contra choques mecânicos. Pense, por exemplo, na planta dos pés. Queimar gordura também é bom negócio quando o corpo precisa de calor.

         A característica mais marcante das gorduras (e dos lipídios) é que eles são praticamente insolúveis em água. São, portanto, hidrofóbicos. E isso é muito importante, como veremos ao tratar de fosfolipídios.

O que é a gordura?

         Antes disso, precisamos saber o que de fato são as gorduras, "bioquimicamente" falando. A gordura é um tipo de lipídio (os dois termos não são sinônimos). Do ponto de vista químico, a gordura é formada através de uma reação de esterificação. Se você lembra de suas aulas de Química Orgânica, sabe que um éster é formado a partir da reação entre um ácido carboxílico e um álcool. Essas duas moléculas se unem, a partir da saída de uma molécula de água.

         Com os lipídios, o princípio é o mesmo. Só que temos um triol, isto é, um álcool contendo três hidroxilas. Trata-se do glicerol (álcool propanotriol), representado abaixo:
        


Estrutura simplificada: 1 glicerol ligado a 3
ácidos graxos
         Como cada hidroxila reage com um grupo carboxila do ácido, precisa-se de três ácidos carboxílicos para que a reação de esterificação ocorra por completo. Mas não se trata de um ácido carboxílico qualquer. O glicerol reage com um ácido graxo, que tem uma longa cadeia carbônica. Essa longa cadeia que confere a característica apolar às gorduras.




Em detalhe, os átomos que reagem, numa forma de reação por esterificação. Essa síntese por desidratação forma um triglicerídeo - as gorduras e os óleos


         Mas há um segundo detalhe: se o ácido graxo que reage com o glicerol conter uma ligação dupla entre seus carbonos, ele é chamado de ácido graxo insaturado.  A primeira vista, essa diferença pode parecer uma grande bobagem. Só que uma ligação dupla a mais pode mudar bastante coisa.



         A gordura saturada (aquela formada pelos ácidos graxos apenas com ligação simples) é sólida à temperatura ambiente. Isso acontece porque as moléculas de gordura saturada conseguem se encaixar, formando um conjunto muito mais coeso (em c, na foto ao lado) A gordura saturada é encontrada na manteiga e no leite, por exemplo.

         A gordura insaturada, porém, não tem essa propriedade. A ligação dupla causa dobras na molécula. Isso torna a aproximação das moléculas muito mais difícil; (em d, na foto ao lado), de modo que elas sejam líquidas à temperatura ambiente. A gordura insaturada é comumente encontrada nos óleos vegetais.


O mito da "gordura ruim"
Observe que a gordura insaturada é constituída por pelo menos um ácido graxo de cadeia insaturada (com ligação dupla entre carbonos)
         E a gordura saturada é a "gordura ruim", certo? Não exatamente! As pessoas que afirmam isso partem da teoria de que a gordura saturada causa aumentos no LDL. O LDL é lipoproteína de baixa densidade. É uma das lipoproteínas que por transporta o colesterol no sangue. O problema é que essa lipoproteína penetra facilmente a parede das artérias, causando seu entupimento. E o resultado disso, você já conhece. Mas essa teoria tem várias falhas. Muitos estudos (um deles, aqui) falharam em mostrar que haja realmente uma relação, a longo prazo, entre o consumo de gordura saturada e a elevação do LDL. Curiosamente, alguns estudos (esse, por exemplo) mostram que gorduras formadas a partir do ácido esteárico, encontrada no chocolate, chegam a reduzir os níveis de LDL. Dizem os autores: "em alguns casos, os efeitos no nível de HDL foram comparáveis aos do ácido palmítico, ácido oleico e ácido linoleico". Esses ácidos graxos são insaturados - considerados "protetores". 

            Ninguém está dizendo, porém, que a gordura saturada faz bem. É claro que, como se trata de uma substância de reserva, os excessos serão armazenados - o que pode causar vários problemas. E algumas dessas gorduras podem, sim, aumentar o LDL. Há vários tipos de gordura saturada e cada uma age de modo distinto. O que devemos entender é que as gorduras saturadas não são a personalização do demônio como a mídia propôs nas últimas décadas. Os mais recentes estudos afirmam que a relação gordura animal e colesterol não é, necessariamente, diretamente proporcional. É uma simplificação tremenda diz "gordura saturada é gordura ruim". Em última análise, carne vermelha e manteiga podem, sim, fazer parte de uma dieta saudável, se não estiverem em excesso. 

Manteiga ou margarina? Vá com a manteiga!
         A gordura insaturada costuma ser chamada de "gordura boa". De fato, estudos mostram que elas aumentam os níveis de HDL. O HDL é o irmão gêmeo bonzinho do LDL. Também é uma lipoproteína que carrega o colesterol. Mas pense no HDL como um caminhão de lixo que passa pela corrente sanguínea. Trata-se de uma lipoproteína protetora porque consegue diminuir a concentração de LDL preso à parede das artérias. Desse modo, o LDL chega ao seu local de destino e despeja lá o colesterol (em geral, é no fígado).

         O Ômega 3 se tornou o queridinho da indústria da suplementação. Como sempre, há estudos conflitantes, mas muitos especialistas associam o Ômega 3 à proteção contra doenças cardíacas e artrite reumatóide. O Ômega 3 é uma gordura poliinsaturada (isto é, com mais de uma insaturação).

Ácido graxo trans

         Mas se formos levar o conceito de gordura insaturada ao pé da letra, temos uma gordura insaturada certamente pior que qualquer gordura saturada. Trata-se da gordura trans. Sem sombra de dúvidas, você deve passar longe dela. Em geral, ela não ocorre naturalmente. Tudo começa com um óleo vegetal, que como falamos, é uma gordura insaturada – inofensiva e até mesmo protetora. Acontece que a indústria alimentícia realiza uma reação química chamada de hidrogenação: uma daquelas duplas ligações entre carbonos é rompida. O carbono se liga, então, a átomos de hidrogênio. O problema: a gordura trans diminui o nível de HDL e aumenta o de LDL. O excesso de gordura trans é (infelizmente) a maneira mais rápida de entrar nas estatísticas de morte por infartos. A gordura trans também contribui para a resistência à insulina, levando à diabetes – uma condição nada saudável.



          E estamos falando de uma gordura insaturada! Por muito tempo, inclusive, a margarina foi considerada uma opção mais saudável quando comparada à manteiga. Enquanto a manteiga é feita a partir da gordura saturada, a margarina era feita por esse método de hidrogenação. A indústria utilizava os saudáveis óleos vegetais e, a partir daí, com a hidrogenação; o que era óleo virava sólido. Fazia-se, então, a margarina. Rica em gordura trans, trata-se de uma opção pior que a manteiga.



Os problemas do excesso de gordura
Mulher com 113 quilogramas, à esquerda; e mulher com 54 quilogramas, à direita

            Gordura boa ou gordura ruim, todas elas têm certo potencial para causar problemas de saúde. Observe a ressonância magnética acima. A mulher da esquerda tem 113 quilogramas e a da direita tem 54 quilogramas. Podemos notar, com impressionantes detalhes, o que o excesso de reservas de gordura faz para os ossos, músculos e órgãos. Observe, no pescoço da mulher da esquerda, a gordura subcutânea que se acumula. As vias aéreas são pressionadas dos dois lados pela gordura - isso pode causar, por exemplo, a apneia do sono. Os tecidos que formam o trato respiratório acabam indo de encontro um ao outro, tornando a respiração mais difícil. As articulações também sofrem com a obesidade. O corpo precisa sustentar um excesso de peso. 

            Observe também a gordura em torno do coração. Compare com o da imagem a direita: o coração da mulher com 113kg é maior. O músculo cardíaco hipertrofiou porque se torna difícil bombear sangue de modo eficiente para todo o corpo. E isso pode causar insuficiência cardíaca. A linha amarela em torno do coração é chamada de gordura pericárdica, que está ligada ao entupimento das artérias. A discrepância mais brutal entre as duas fotos está quando olhamos para as vísceras. A mulher da esquerda tem muita gordura na região do abdômen, enquanto a mulher da direita tem níveis mínimos.

         Perder peso, em alguns casos, é uma questão de saúde. E a ciência ajuda. O blog entrevistou uma nutricionista que ensina o modo correto. Clique aqui para ler a matéria.

Isso é só uma parte da história. Quando o glicerol e os ácidos graxos se unem a um grupo fosfato, eles formam um composto que cerca todas as células de qualquer ser vivo do mundo: o fosfolipídio.  Falaremos dele na próxima!

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