terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Bomba cerebral: deficiência de tiamina (vitamina B1) e a síndrome de Wernicke-Korsakoff


Pirofosfato de tiamina (ou difosfato de tiamina) é a forma biologicamente ativa da vitamina B1
Devo dizer, você dificilmente vai encontrar alguém por aí que tenha escorbuto ou outras doenças causadas por déficits nutricionais, comuns aos navegantes das caravelas do século XVI. A menos que você se depare com um alcoólatra crônico num plantão médico. Uma dieta baseada em pão, manteiga e cerveja provavelmente não vai ser aprovada quando analisada numa calculadora de nutrientes.

Uma das possíveis (e talvez mais graves) deficiências que um alcoólatra pode ter é uma insuficiência de vitamina B1, a tiamina.

Causas
Há vários mecanismos possíveis para explicar a insuficiência de tiamina em alcoólatras. O primeiro é o mais óbvio: pouca tiamina na dieta. No entanto, há mudanças na fisiologia da membrana das células do epitélio intestinal, de modo que haja diminuição no sistema de bombeamento de tiamina para o sangue.

De acordo com um artigo bem antigo publicado no The American Journal of Clinical Nutrition:
São vários os mecanismos que podem estar envolvidos na origem da deficiência de tiamina (vitamina B1) nos alcoólatras. Uma das razões é um consumo inadequado de tiamina. Além disso, pode haver uma diminuição na conversão de tiamina para a coenzima (tiamina pirofosfato), redução no armazenamento hepático de vitamina em pacientes com esteatose hepática, inibição de tiamina no intestino por causa do etanol, e danos à absorção de tiamina por causa de outras deficiências nutricionais.
Em detalhes, o mecanismo é, de acordo com o estudo, o seguinte:
O etanol inibe o transporte ativo (e não o passivo) de tiamina, ao impedir a saída da tiamina pela membrana basolateral ou serosa. Os danos ao sistema de transporte de saída de tiamina do enterócito (célula dos vilos intestinais) relaciona-se com uma queda na atividade da bomba de sódio e potássio. Entremeada na membrana basolateral, a ATPase Na-K, acredita-se, está envolvida na cinética do transporte ativo. O etanol também aumenta a fluidez da membrana dos microvilos (borda em escova) e da membrana basolateral. Uma vez que o etanol aumenta a fluidez de tais membranas, é possível que o prejuízo ao transporte de tiamina e a redução no funcionamento da bomba de sódio e potássio estejam relacionados, ao menos parcialmente, a uma perturbação de ordem física na membrana do enterócito.   
Deficiência de tiamina pós-cirurgia bariátrica
Os alcoólatras não são os únicos, porém, que podem ter deficiência de tiamina. Há vários relatos na literatura médica de pacientes que fizeram cirurgia bariátrica e alguns meses ou mesmo anos após a operação, começaram a ter psicose e síndromes neurológicas e psiquiátricas das mais estranhas. 

Insuficiência de cobre, ferro, vitamina B12 são algumas das deficiências descritas em quem passou pela redução de estômago. E, além dessas, a deficiência de tiamina também é comum (como neste caso de Wernick-Korsakoff em um homem submetido a divisão biliopancreática, 5 semanas após a cirurgia).

Funções da tiamina
Mas e daí se você não tem tiamina suficiente? Você já deve saber que seu cérebro ama energia: esse órgão usa 20% de toda a energia do corpo (e 25% de todo o oxigênio inalado). Os nervos também necessitam constantemente de energia. Em ambos os casos, a manutenção dos mecanismos de polarização e despolarização, essenciais para a transmissão dos impulsos nervosos, envolve enorme dispêndio de ATP.

A forma biologicamente ativa da vitamina B1, o pirofosfato de tiamina serve como cofator em um porção de reações do metabolismo energético. Talvez a principal seja sua atuação no complexo piruvato desidrogenase, uma etapa que antecede o ciclo de Krebs. 

Esse complexo faz parte da principal via de produção energética (a partir da glicose). O piruvato, produto final da glicólise, sofre uma descarboxilação oxidativa, a fim de produzir o grupo acetila do acetil-coenzima A. Essa descarboxilação só ocorre com a tiamina pirofosfato.

Efeitos da deficiência de tiamina
Células de neuroblastoma, num meio de cultura com baixa concentração de tiamina, (...) apresentam sinais evidentes de necrose: a cromatina condensa-se em remendos escuros, o consumo de oxigênio diminui, ocorre o desacoplamento mitocondrial, e as cristas mitocondriais são desorganizadas. O glutamato, formado a partir da glutamina, não é mais oxidado, e se acumula.
O acúmulo de glutamato é explicado porque a enzima alfa-cetoglutarato desidrogenase depende do pirofosfato de tiamina (que novamente atua como cofator).

O excesso de glutamato pode causar um fenômeno chamado de excitoxicidade, em que os receptores proteicos do glutamato são altamente estimulados (o oposto do que ocorre com a toma de drogas como a cetamina ou o PCP). A excitoxicidade é comum em casos de derrame, em que a oferta de oxigênio ao cérebro é diminuída. Em ambos os casos, há redução na produção de energia por vias aeróbicas.

Ou seja: os resultados de uma deficiência em vitamina B1 não são muito bonitos. Neurônios mortos e apodrecendo, com a degeneração, pouco a pouco, do cérebro. Algumas áreas do cérebro, como os corpos mamilares e partes do cerebelo parecem ser particularmente vulneráveis, uma vez que são áreas que dependem muito do metabolismo de glicose.

O coração, outro órgão que tem um consumo de energia enorme, também é vulnerável à deficiência de tiamina. Os sintomas que atingem o sistema nervoso costumam ser categorizados como "beribéri seco", enquanto os sintomas cardiovasculares são conhecidos como "beribéri molhado".

E quais são os sintomas? Tradicionalmente, a tríade clínica inclui paralisia de certos músculos oculares (oftalmoplegia), problemas com coordenação e movimentos como andar (ataxia) e confusão. Apenas um terço dos pacientes irão apresentar todos os três - a maioria aparecerá muito desorientada, desatenta, e algumas vezes agitada. 

Se um paciente com deficiência em tiamina grave for a um pronto socorro e receber soro glicosado na veia, ocorrerá uma piora no quadro, que pode levar ao coma e mesmo a morte. Isso porque, caso haja uma hiperglicemia, mais piruvato será formado; sem que ocorra a metabolização dele (sem a tiamina pirofosfato, não ocorre o ciclo de Krebs). Administrar glicose ou dextrose é tradicional e corriqueiro em pronto-socorros, mas pode matar um paciente alcoólatra, se não for feita antes a administração de tiamina.

Em geral, recomenda-se nos protocolos para alcoolismo a administração de tiamina, 100mg, de 2 a 3 vezes por dia durante até duas semanas. Isso costuma levar à melhora do quadro clínico nos casos de encefalopatia de Wernicke. 

Imagens de ressonância magnética mostram encolhimento do lobo frontal em alcoólatras com Korsakoff

No entanto, a síndrome de Korsakoff, uma condição crônica, é reversivelmente em apenas 20% dos casos. Trata-se de um transtorno amnésico (tanto amnésia anterógrada [dificultando o aprendizado], quanto amnésia retrógrada [dificuldade em lembrar-se de eventos anteriores à doença]) são observadas, com danos ao lobo frontal.

Os alcoólatra que possuem Wernicke-Korsakoff passam a confabular. Se você o perguntar algo, ele poderá não saber a resposta, mas irá inventar uma. Não se sabe a mentira é proposital. Alguns dizem que é para evitar o constrangimento causado pelo déficit de memória, mas isso é controverso.

Se você não bebe 5 litros de álcool por dia ou não é membro de uma viagem numa caravela medieval, provavelmente nunca irá experimentar esses sintomas tão dramáticos. Ainda assim, a síndrome de Wernicke-Korsakoff é um exemplo extremo de como é importante se alimentar corretamente.


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