quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Estudo de caso: maus-tratos na infância

Caso clínico*
04 de dezembro de 2018

Identificação
A.J.J., sexo feminino, 2 anos e 11 meses.

Queixa principal
Maus-tratos

História da doença atual
Tios relatam que há 5 dias a paciente compareceu a uma Unidade Básica de Saúde, pois a mãe relatava uma “alergia”. A paciente apresentava edema e equimose periorbitária (sinal de Guaxinim), edema de região cervical e  occipital, e confusão mental. Na unidade, foi encaminhada pelo SAMU ao pronto-atendimento. Evoluiu com rebaixamento do nível de consciência, necessitando de uma intubação orotraqueal e sedação. Glasgow = 8,  com hipótese diagnóstica de TCE secundário a maus-tratos.




Encaminhada ao Hospital Regional para avaliação de neurocirurgião e realização de tomografia computadorizada. A paciente não tinha alterações dignas de nota ao exame (“sem inchaço” [sic]) e não teve indicação cirúrgica. 

“Quadro tomográfico de crânio compatível com discreto aumento de partes moles nas regiões occipital direita e biparietal” (sic em laudo). À gasometria, apresentava acidose respiratória? (pH = 7.29, p CO2 = 47 mmHg, p O2 = 144, BE = - 3,8 mmol/L.

Internada na UTI pediátrica na mesma noite, onde foi mantida em coma induzido e em IOT.

Hemoglobina de 8.7 mg/dL no dia 30/11. Evoluiu com melhora clínica, respiração espontânea e aceitação da dieta. Extubada no dia 01/11. Recebeu alta para a enfermaria ontem. Tios relatam melhora do estado geral e comportamento normal.

Antecedentes patológicos
Tios negam histórico ou suspeita de maus-tratos prévia.

História socioeconômica e familiar
Tem duas irmãs (uma gêmea e uma de 6 anos) de casamento materno prévio. Pai mora em Cuiabá. Mãe iniciou relacionamento com presidiário com tornozeleira eletrônica há 3 meses (sic). Padrasto é tabagista, etilista e usuário de drogas (sic). A mãe está presa, o padrasto é considerado fugitivo da Justiça e a guarda da criança foi transferida para a avó paterna (sic).

Exame físico
Inspeção: BEG, equimose periorbitária, corada, hidratada, ativa e reativa. Humor calmo. Anictérica, acianótica.

Ausculta cardíaca: BRNT em 2T.

Ausculta pulmonar: som claro pulmonar, sem ruídos adventícios, em ambos hemitórax.

Neurológico: reflexo pupilar presente, reflexo de Babinski negativo. Responde a estímulos motores e verbais, riso social presente.

Comentários
Os maus-tratos na infância são um tema prioritário em saúde pública. Parte da preocupação é referente à violência doméstica - aquela praticada no âmago da residência, quase sempre praticada pelos familiares ou responsáveis que deveriam estar imbuídos da proteção da criança. 

Uma das formas é a violência física, que é conceituada pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) como o uso proposital de força física a fim de ferir, lesar ou destruir a criança, podendo deixar ou não marcas visíveis. Muitas vezes, o castigo físico é utilizado como prática pedagógica, a fim de "mostrar quem manda". A solução de conflitos pela força, naturalizada culturalmente, deve ser combatida - a violência pode ter repercussões graves na saúde física e mental da criança.

Estatísticas são difíceis: pelo próprio fato de ocorrer dentro de casa, da incapacidade ou medo da criança em denunciar e devido à dificuldade de muitos pediatras em reconhecer essa forma de violência no atendimento. De acordo com o dr. Mário Hirschheimer, presidente do Departamento Científico de Segurança da SBP:
“Disseminar informações técnicas a respeito do reconhecimento precoce de sinais e indícios de maus-tratos consiste numa ação primordial, visto que a maior parte das crianças não denuncia a violência sofrida. O papel do pediatra é extremamente importante, pois cabe a ele identificar os casos suspeitos e realizar a notificação”.
A notificação refere-se à obrigatoriedade de reportar os casos ao Ministério da Saúde. O reconhecimento, por sua vez, depende da experiência e do nível de suspeição do profissional. É importante questionar se os danos à integridade física são acidentais - o que é relatado, muitas vezes, pelos pais, como "queda da própria altura" ou outros acidentes - ou intencionais (violência física).

Entre os dados da anamnese que podem sugerir a violência física:

  • Incompatibilidade da história relatado pelos pais com os possíveis achados ao exame físico/exames complementares - no relato de caso, por exemplo, os tios contam que mãe buscou o atendimento médico em UBS, mas a queixa ("alergia") era extremamente descabível com os achados de confusão mental, edema periorbitário e edema de partes moles. Em outros casos, trauma acidental é relatado, mas o mecanismo de trauma não condiz com os achados.
  • Omissão total ou parcial de história de trauma - no caso clínico, segundo os tios, houve omissão total de história de trauma.
  • Histórias diferentes quando os membros da família são questionados isoladamente - é útil conversar reservadamente com cada responsável, bem como questionar em detalhes sobre o cenário e mecanismo do trauma.
  • Uso abusivo de drogas por algum dos cuidadores ou por pessoas que morem na mesma casa, conflitos com a lei, violência doméstica (demanda conversar separadamente com os pais) - no caso clínico, mãe e padrasto tem problemas com a Justiça; padrasto tem histórico de abuso de drogas lícitas e ilícitas.
Ao exame físico, entre os achados que sugerem violência física, temos:
  • Lesões em estágios diferentes de cicatrização - muitas vezes, achadas casualmente à radiografia, como por exemplo fraturas consolidadas em fêmur e arcos costais em criança com fraturas recentes em crânio (nas radiografias da foto abaixo, retirada de um estudo de caso).

  • Marcas de objetos
  • Comportamento apático, sinais neurológicos - criança apática e sonolenta, como relatado no caso clínico. 30% das crianças agredidas apresentam traumatismos na cabeça.
  • Lesões em locais não usuais, frequentemente escondidos por peças de roupa.
Como já dito, é obrigatória a notificação dos casos ao Ministério da Saúde. A atuação do Conselho Tuteral, o manejo multidisciplinar dos traumas físicos e emocionais, além de aconselhamento à criança e familiares são fundamentais.

*Caso fictício

Leia mais
Consulte a 2ª edição do “Manual de Atendimento às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência” da SBP para mais informações.

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