Pirofosfato de tiamina (ou difosfato de tiamina) é a forma biologicamente ativa da vitamina B1 |
Devo dizer, você dificilmente vai encontrar alguém por aí que tenha escorbuto ou outras doenças causadas por déficits nutricionais, comuns aos navegantes das caravelas do século XVI. A menos que você se depare com um alcoólatra crônico num plantão médico. Uma dieta baseada em pão, manteiga e cerveja provavelmente não vai ser aprovada quando analisada numa calculadora de nutrientes.
Uma das possíveis (e talvez mais graves) deficiências que um alcoólatra pode ter é uma insuficiência de vitamina B1, a tiamina.
Causas
Há vários mecanismos possíveis para explicar a insuficiência de tiamina em alcoólatras. O primeiro é o mais óbvio: pouca tiamina na dieta. No entanto, há mudanças na fisiologia da membrana das células do epitélio intestinal, de modo que haja diminuição no sistema de bombeamento de tiamina para o sangue.
De acordo com um artigo bem antigo publicado no The American Journal of Clinical Nutrition:
São vários os mecanismos que podem estar envolvidos na origem da deficiência de tiamina (vitamina B1) nos alcoólatras. Uma das razões é um consumo inadequado de tiamina. Além disso, pode haver uma diminuição na conversão de tiamina para a coenzima (tiamina pirofosfato), redução no armazenamento hepático de vitamina em pacientes com esteatose hepática, inibição de tiamina no intestino por causa do etanol, e danos à absorção de tiamina por causa de outras deficiências nutricionais.
Em detalhes, o mecanismo é, de acordo com o estudo, o seguinte:
O etanol inibe o transporte ativo (e não o passivo) de tiamina, ao impedir a saída da tiamina pela membrana basolateral ou serosa. Os danos ao sistema de transporte de saída de tiamina do enterócito (célula dos vilos intestinais) relaciona-se com uma queda na atividade da bomba de sódio e potássio. Entremeada na membrana basolateral, a ATPase Na-K, acredita-se, está envolvida na cinética do transporte ativo. O etanol também aumenta a fluidez da membrana dos microvilos (borda em escova) e da membrana basolateral. Uma vez que o etanol aumenta a fluidez de tais membranas, é possível que o prejuízo ao transporte de tiamina e a redução no funcionamento da bomba de sódio e potássio estejam relacionados, ao menos parcialmente, a uma perturbação de ordem física na membrana do enterócito.
Deficiência de tiamina pós-cirurgia bariátrica
Os alcoólatras não são os únicos, porém, que podem ter deficiência de tiamina. Há vários relatos na literatura médica de pacientes que fizeram cirurgia bariátrica e alguns meses ou mesmo anos após a operação, começaram a ter psicose e síndromes neurológicas e psiquiátricas das mais estranhas.
Insuficiência de cobre, ferro, vitamina B12 são algumas das deficiências descritas em quem passou pela redução de estômago. E, além dessas, a deficiência de tiamina também é comum (como neste caso de Wernick-Korsakoff em um homem submetido a divisão biliopancreática, 5 semanas após a cirurgia).
Funções da tiamina
Mas e daí se você não tem tiamina suficiente? Você já deve saber que seu cérebro ama energia: esse órgão usa 20% de toda a energia do corpo (e 25% de todo o oxigênio inalado). Os nervos também necessitam constantemente de energia. Em ambos os casos, a manutenção dos mecanismos de polarização e despolarização, essenciais para a transmissão dos impulsos nervosos, envolve enorme dispêndio de ATP.
A forma biologicamente ativa da vitamina B1, o pirofosfato de tiamina serve como cofator em um porção de reações do metabolismo energético. Talvez a principal seja sua atuação no complexo piruvato desidrogenase, uma etapa que antecede o ciclo de Krebs.
Esse complexo faz parte da principal via de produção energética (a partir da glicose). O piruvato, produto final da glicólise, sofre uma descarboxilação oxidativa, a fim de produzir o grupo acetila do acetil-coenzima A. Essa descarboxilação só ocorre com a tiamina pirofosfato.
Efeitos da deficiência de tiamina
Segundo outro estudo do The American Journal of Clinical Nutrition:
Células de neuroblastoma, num meio de cultura com baixa concentração de tiamina, (...) apresentam sinais evidentes de necrose: a cromatina condensa-se em remendos escuros, o consumo de oxigênio diminui, ocorre o desacoplamento mitocondrial, e as cristas mitocondriais são desorganizadas. O glutamato, formado a partir da glutamina, não é mais oxidado, e se acumula.
O acúmulo de glutamato é explicado porque a enzima alfa-cetoglutarato desidrogenase depende do pirofosfato de tiamina (que novamente atua como cofator).
O excesso de glutamato pode causar um fenômeno chamado de excitoxicidade, em que os receptores proteicos do glutamato são altamente estimulados (o oposto do que ocorre com a toma de drogas como a cetamina ou o PCP). A excitoxicidade é comum em casos de derrame, em que a oferta de oxigênio ao cérebro é diminuída. Em ambos os casos, há redução na produção de energia por vias aeróbicas.
O excesso de glutamato pode causar um fenômeno chamado de excitoxicidade, em que os receptores proteicos do glutamato são altamente estimulados (o oposto do que ocorre com a toma de drogas como a cetamina ou o PCP). A excitoxicidade é comum em casos de derrame, em que a oferta de oxigênio ao cérebro é diminuída. Em ambos os casos, há redução na produção de energia por vias aeróbicas.
Ou seja: os resultados de uma deficiência em vitamina B1 não são muito bonitos. Neurônios mortos e apodrecendo, com a degeneração, pouco a pouco, do cérebro. Algumas áreas do cérebro, como os corpos mamilares e partes do cerebelo parecem ser particularmente vulneráveis, uma vez que são áreas que dependem muito do metabolismo de glicose.
O coração, outro órgão que tem um consumo de energia enorme, também é vulnerável à deficiência de tiamina. Os sintomas que atingem o sistema nervoso costumam ser categorizados como "beribéri seco", enquanto os sintomas cardiovasculares são conhecidos como "beribéri molhado".
E quais são os sintomas? Tradicionalmente, a tríade clínica inclui paralisia de certos músculos oculares (oftalmoplegia), problemas com coordenação e movimentos como andar (ataxia) e confusão. Apenas um terço dos pacientes irão apresentar todos os três - a maioria aparecerá muito desorientada, desatenta, e algumas vezes agitada.
Se um paciente com deficiência em tiamina grave for a um pronto socorro e receber soro glicosado na veia, ocorrerá uma piora no quadro, que pode levar ao coma e mesmo a morte. Isso porque, caso haja uma hiperglicemia, mais piruvato será formado; sem que ocorra a metabolização dele (sem a tiamina pirofosfato, não ocorre o ciclo de Krebs). Administrar glicose ou dextrose é tradicional e corriqueiro em pronto-socorros, mas pode matar um paciente alcoólatra, se não for feita antes a administração de tiamina.
Em geral, recomenda-se nos protocolos para alcoolismo a administração de tiamina, 100mg, de 2 a 3 vezes por dia durante até duas semanas. Isso costuma levar à melhora do quadro clínico nos casos de encefalopatia de Wernicke.
Imagens de ressonância magnética mostram encolhimento do lobo frontal em alcoólatras com Korsakoff |
No entanto, a síndrome de Korsakoff, uma condição crônica, é reversivelmente em apenas 20% dos casos. Trata-se de um transtorno amnésico (tanto amnésia anterógrada [dificultando o aprendizado], quanto amnésia retrógrada [dificuldade em lembrar-se de eventos anteriores à doença]) são observadas, com danos ao lobo frontal.
Os alcoólatra que possuem Wernicke-Korsakoff passam a confabular. Se você o perguntar algo, ele poderá não saber a resposta, mas irá inventar uma. Não se sabe a mentira é proposital. Alguns dizem que é para evitar o constrangimento causado pelo déficit de memória, mas isso é controverso.
Se você não bebe 5 litros de álcool por dia ou não é membro de uma viagem numa caravela medieval, provavelmente nunca irá experimentar esses sintomas tão dramáticos. Ainda assim, a síndrome de Wernicke-Korsakoff é um exemplo extremo de como é importante se alimentar corretamente.
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