Pense num neurotransmissor. Qualquer um.
As chances são de que você tenha
lembrado da dopamina. É a dopamina que azeita o funcionamento do nosso sistema
de recompensa: é só comer um prato com bastante açúcar e gordura, ou encontrar
amigos ou então transar para que se sinta uma sensação de prazer e de bem-estar.
Neurotransmissor que explica o vício em cocaína e anfetaminas, a infâmia da dopamina
lhe rendeu bastante fama. Acetilcolina, endorfina, noreprinefrina também estão
no rol daqueles neurotransmissores bem lembrados.
E é uma tremenda injustiça se você
não lembrou do glutamato (derivado do ácido glutâmico, essa molécula aí em cima) – quando eu disse para
pensar num neurotransmissor. Trata-se do neurotransmissor excitatório mais
comum em seu cérebro (e no cérebro dos outros mamíferos também, a propósito).
"Tá, que legal, mas serve pra que?". Talvez a função mais importante
do glutamato seja seu papel na memória. O hipocampo, que é a principal área do
cérebro quando o assunto é a formação de memória, usa (muito) glutamato.
Se aprendermos uma nova língua, memorizamos
todas as reações químicas do ciclo de Krebs ou então decoramos o número do
nosso CPF, temos muito a agradecer ao glutamato. O fenômeno pelo qual ele faz
isso se chama "Potenciação de Longa Duração" ou LTP, na sigla em inglês.
Em miúdos, o LTP é o resultado do
estudo constante de um mesmo material ou da repetição das mesmas informações. Durante
esse processo, o glutamato vai sendo liberado, no hipocampo, por um neurônio pré
sináptico e encontra receptores de dois tipos no neurônio pós sináptico. Há os
receptores AMPA e os receptores NMDA, que normalmente ficam bloqueados por um íon
de magnésio. Acontece que, se os receptores AMPA receberem estímulos o
suficiente, o íon de magnésio acaba saindo dos receptores NMDA. E aí que está a
chave para entender como formamos memória.
A saída do íon de magnésio dos
receptores NMDA (que depende de quanto os receptores AMPA são estimulados)
causa um influxo de cálcio no neurônio pós-sináptico. A grande concentração de
cálcio desencadeia uma série de reações químicas que consagram o LTP. A sinapse
entre aqueles dois neurônios, então, se torna muito forte. Assim, o neurônio pré-sináptico
passa a liberar cada vez mais glutamato, enquanto o neurônio pós-sináptico se
despolariza muito mais facilmente.
Em outras palavras: seu
aprendizado depende da constante estimulação dos seus neurônios, o que só pode
ser conseguido com bastante revisão de conteúdo. Cientificamente, vale mais
estudar pouco, mas com certa frequência, sobre algum assunto; do que estudá-lo
por um dia inteiro e não revisá-lo mais.
Mas o glutamato não serve só para
memória, não. E aí que está: os neurônios sensoriais, aqueles que captam os estímulos,
são uns dos que mais utilizam o glutamato. Então, imagina só: se não fosse por
aquelas moléculas de glutamato sendo liberadas em sua sinapse, você não seria
capaz de "sentir" o mundo exterior. Isso pode soar pura ficção científica,
mas não é. Você pode deixar de receber as informações sensoriais e se livrar de
qualquer sensação. Ou quase isso.
Dissociado
Dissociado
O pó dos anjos ou fenilciclidina é um antagonista dos receptores de NMDA |
Há drogas que são capazes de
entupir aqueles receptores NMDA do glutamato. E, com isso, as funções do
glutamato – desde as cognitivas até as sensoriais – ficam comprometidas, pois o
neurônio não é mais despolarizado (ou "estimulado"). Uma dessas
drogas é a cetamina (carinhosamente chamada de Special K). A cetamina é usada
nos hospitais até hoje. Mais barra pesada que ela é o pó do anjo, ou
fenilciclidina.
Em inglês, essa droga é conhecida
como PCP. Trata-se de um poderoso inibidor dos receptores de glutamato. E, daí,
o PCP produz seus efeitos anestésicos dissociativos. Os usuários relatam uma "sensação
de separação" do ambiente, como se este fosse desaparecendo até se tornar
inexistente. Dormência, dificuldades em falar e andar são alguns dos efeitos.
No entanto, o efeito mais preocupante são quadros psicóticos que, algumas
vezes, são virtualmente idênticos aos da esquizofrenia. Esses quadros psicóticos
envolvem violência extrema.
Vale a pena dar uma olhada nessas
cenas do filme norte-americano Desperate Lives. A tentativa era de fazer uma
campanha anti-drogas. Nas cenas, a atriz Helen Hunt cheira o pó dos anjos e
entra num quadro psicóptico. Digamos que o filme foi "um pouco" fora
da realidade e teve excelentes efeitos especiais.
Brincadeiras a parte, o PCP e
outras drogas que antagonizam o glutamato nos receptores NMDA podem ter efeitos
terríveis. Más notícias: literalmente, você pode ficar com buracos no cérebro
se quiser experimentar sua "alucinação dissociativa". Até hoje, não
foi nada observado em humanos (lembrando que a cetamina é usada nos hospitais para
anestesia e sedação). Em ratos, porém, foi comprovada extensivamente a formação
de vácuolos nos neurônios, após a exposição aos inibidores dos receptores de
NMDA. O resultado final, após uma cascada de efeitos bem documentados, é a
necrose dos neurônios com formação de lesões irreversíveis no cérebro dos
roedores.
Na lista de antagonistas do NMDA mais
tóxicos, o pó dos anjos figura em segundo lugar. O campeão aqui é uma droga
chamada de dizocilpina. Ela só existe (até onde se sabe) em laboratórios, onde
também é chamada de MK-801. No início dos anos 80, os efeitos sedativos da
dizocilpina eram promissores para uma equipe de pesquisadores do laboratório
Merck. Eles haviam achado um novo remédio para lidar com convulsões. Infelizmente,
a dizocilpina logo mostrou seus efeitos devastadores no cérebro dos roedores. Além
de apodrecer o cérebro dos animais, causando déficits cognitivos severos (com
inibição também da LTP, é claro), os cientistas notaram que o MK-801 causava "reações
psicóticas". E, se temos dizocilpina sendo sintetizada por aí até hoje, é
justamente para isso: imitar a psicose em animais para fins experimentais.
Mas... O quanto que a dizocilpina
é controlada? E se alguém desse um jeito de usar? É seguro dizer que no máximo
algumas dezenas de pessoas já tiveram a dizocilpina viajando em sua corrente
sanguínea. Mas elas existem. Alguns relatos do uso da dizocilpina são
encontrados, em inglês, no site Erowid. Mas cabe a cada um acreditar neles ou não.
A vitamina B1
A vitamina B1
Mas o futuro parece promissor
para o uso clínico do MK-801 ou dizocilpina. Pelo menos, algumas pesquisas
recentes mostram que certas substâncias podem prevenir a neurotoxicidade dessa
droga e até mesmo reverter os déficits cognitivos que ela causa. Uma dessas
substâncias é a sulbutiamina, um derivado da vitamina B1 (tiamina). Enquanto a
vitamina B1 não consegue cruzar muito bem a barreira que divide o cérebro do
sangue, por não ser lipossolúvel; a sulbutiamina consegue, sendo lá
transformada em tiamina. Essencialmente, sulbutiamina nada mais é, para todos
os efeitos, que um veículo para entregar a vitamina B1 em largas doses aos neurônios.
É provável que os ésteres de tiamina sejam essenciais para (ou estimulem a ocorrência da LTP). |
A sulbutiamina pode ser comprada
em praticamente qualquer farmácia, com o nome fantasia de Arcalion. Fabricado
pelo laboratório Servier, a indicação do Arcalion é, de acordo com a bula:
"tratamento das astenias físicas, psiquícas e intelectuais". Astenia
nada mais é que um esgotamento e cansaço extremo. Então, basicamente, o
Arcalion serve para dar uma "energia"? Parece ser bem mais que isso. Um estudo francês mostrou que ratos que recebiam sulbutiamina se davam melhor em
alguns testes de memória do que os colegas que recebiam placebo. Mas mais
chocante que isso, os pesquisadores resolveram também administrar a dizocilpina
para os ratos. E o resultado: "a dizocilpina prejudicou o aprendizado e a
lembrança da tarefa no grupo (de ratos) que recebeu placebo, mas não nos grupos
que foram tratados com sulbutiamina, o que sugere que a sulbutiamina pode
inibir a amnésia causada pelo bloqueia dos receptores NMDA de glutamato".
Em resumo, a vitamina B1 – quem diria
– pode evitar alguns dos efeitos desastrosos de uma droga super potente. Mas, é
bem mais que isso: a descoberta dos franceses indicam que a sulbutiamina modula
positivamente o glutamato. Com a intensificação da ação desse neurotransmissor,
o mecanismo de LTP pode ocorrer mais facilmente. Então, seria a sulbutiamina um
aliado da memória. Os cientistas vão ainda mais além. Revirando o baú, lá em
1984, um estudo administrou altas doses da sulbutiamina para ratos. E, após 10
dias, houve um aumento de 10% no uso de colina pelos neurônios do hipocampo. A
colina é a base para construir a acetilcolina, um neurotransmissor envolvido na
formação de memórias, assim como o glutamato. "Esses resultados indicam
que a sulbutiamina melhora a consolidação da memória e que esses efeitos se
devem, possivelmente, por causa de um aumento na atividade colinérgica no
hipocampo".
PS 1: A deficiência de tiamina,
comum em alcoólatras, produz um quadro clínico terrível: a encefalopatia de
Wernicke, uma doença neurológica. O paciente sente-se confuso, pode ter
problemas para articular a fala e até mesmo paralisia do músculo do olho. Se
for "sortudo" o suficiente, a deficiência de vitamina B1 também causa
a síndrome de Korsakoff, com amnésia e problemas cognitivos severos. Forma-se,
então, a síndrome de Wernicke-Korsakoff.
Qual é o tratamento? O mais
convencional é a administração de 100mg de tiamina intravenosa. No entanto,
lembre-se que a tiamina tem extrema dificuldade para atingir o sistema nervoso,
por não ser lipossolúvel. A sulbutiamina, por outro lado, cruza facilmente a
barreira hematoencefálica, sendo muito melhor absorvida. Assim, a sulbutiamina age
diretamente no cérebro. É, então, por lógica, o melhor tratamento para uma doença neurológica causada pela deficiência de vitamina B1. Só que, curiosamente, se você pesquisar "sulbutiamina Korsakoff"
ou "sulbutiamina Wernicke" no Google, os resultados são praticamente
inexistentes.
PS 2: Se o assunto é melhorar a memória, a sulbutiamina perde feio para as ampaquinas.
PS 2: Se o assunto é melhorar a memória, a sulbutiamina perde feio para as ampaquinas.
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