*Caso fictício, para todos os fins
05 de novembro de 2018
05 de novembro de 2018
19h - Hospital, leito comum
Anamnese
Identificação
RN L.S., do sexo masculino, 7 dias de vida. Nascido a termo, com 39 semanas e 1 dia de idade gestacional.
Filho da mãe R.S., 18 anos,
sem profissão, G2Pn1Pc1A0.
Queixa principal (mãe): “infecção na bolsa”.
HDA
Mãe
relata que há oito dias iniciou trabalho de parto em ambiente hospitalar. Refere que permaneceu por mais de 12 horas com bolsa rota, de líquido amniótico claro. Relata ainda que foi realizada
antibioticoterapia durante o trabalho de parto. Seu RN nasceu de parto via vaginal,
sem intercorrências, há sete dias.
Mãe refere que, após o nascimento, foi
realizado um hemograma em seu RN. O exame constatou uma infecção (sic). Refere que, por isso, a equipe médica iniciou antibioticoterapia e manteve a internação hospitalar, com previsão de alta para amanhã (sic).
Mãe refere que RN
mantém-se assintomático desde o nascimento, calmo, com boa sucção, hábito intestinal
normal, e diurese presente.
Antecedentes fisiológicos
Pré
natal: mãe do RN refere exame indeterminado para toxoplasmose na
23ª semana de gestação (2º trimestre – IgG negativo e IgM indeterminado; 3º trimestre
– avidez indeterminada + IgG negativa e IgM indeterminada). Refere que foi encaminhada para o PNAR, onde fez uso
de espiramicina por uma semana (recebeu alta medicamentosa). Nega ter realizado tratamento com antibióticos durante o período pré-natal.
História patológica pregressa
Medicamentos em uso: RN em uso de gentamicina (14 mg 24/24hrs) e ampicilina (360 mg 12/12hrs), sulfadiazina, pirimetamina e ácido folínico.
Exame
físico
Inspeção geral: BEG,
corado, anictérico (?), acianótico, hidratado, afebril.
Fontanela anterior e
posterior normotensas.
Membros: Ortolani negativo.
Face: Implantação
normal de orelhas. Olhos sem pregas epicânticas.
Neurológico: preensão
palmar presente, Moro presente, Babinski presente.
Cardiovascular: bulhas
normofonéticas, rítmicas, em 2 tempos. Estimativa da FC dificultada por conta
da presença de soluços.
Respiratório: murmúrios
vesiculares presentes, sem ruídos adventícios. Soluços.
Abdominal: abdômen inocente,
sem visceromegalias, normotenso, ruídos hidroaéreos presentes.
Exames
complementares
30/10 - leucócitos 17.500, referência de até 21.000
03/11 - discreta anemia
03/11 - "triagem infecciosa alterada” (PCR 6.300, VR de 0 – 5 [?]): risco para toxo (segundo anotação em prontuário). Teste do
olhinho, do coraçãozinho e da orelhinha normais.
Aguarda TC de crânio.
Comentários: sepse neonatal
Sepse neonatal é uma síndrome clínica em que um recém-nascido, frente a uma bacteremia, desenvolve uma resposta inflamatória sistêmica. É dita precoce quando surge antes das 72 horas de vida e tardia, se após. Essa condição tem alta morbimortalidade, justificando o uso de antibioticoterapia precoce.
A forma precoce - que se relaciona a esse estudo de caso - tem sinais mínimos e inespecíficos. Ela tem a ver com fatores pré-natais e do periparto. As bactérias que causam esse quadro no recém-nascido, mais frequentemente, são aquelas presentes no trato genital feminino, como Streptococcus agalactiae, E. coli e Listeria monocitogenes.
Diagnóstico e suspeita
Desse modo, a tríade para diagnóstico envolve a clínica - como dita, muitas vezes pouco exuberante - do RN, relacionadas à suspeita, devido a presença de fatores de risco maternos e neonatais, além de investigação por meio de exames laboratoriais.
Quanto à clínica, dispneia, taquicardia ou bradicardia, distensão abdominal, icterícia, déficit de perfusão, hipotonia e letargia podem ocorrer. No caso clínico em questão, o RN não tinha nenhuma dessas manifestações - e a mãe nega qualquer sintoma significativo anterior.
Os fatores de risco relacionados ao pré-natal e ao periparto estão abaixo:
Desses, apenas a bolsa rota prolongada pode ser identificada como risco em nosso caso. A mãe refere que permaneceu por mais de 12 horas com bolsa rota (referiu ainda que o líquido era claro). Não é claro se esse tempo foi maior que 18 horas. Foi realizada antibioticoterapia durante o trabalho de parto - uma medida profilática contraa sepse neonatal.
Entre os exames laboratoriais, além da hemocultura, um deles é o hemograma. A mãe referiu que havia sido informada de que o RN tinha uma "infecção" porque algum dos parâmetros do hemograma "estava em 17" (sic). Em prontuário, registrou-se que, logo após nascer, o RN tinha 17.500 leucócitos/mm³ - ainda insuficiente para considerar leucocitose.
No entanto, no dia 03/11, aos cinco dias de vida, o RN tinha uma PCR (proteína C-reativa) de 6.300 [6.3?]. A elevação foi atribuída como "risco para toxo" - mas esse marcador não costuma estar elevado na toxoplasmose [fonte]. No entanto, a PCR é um marcador inflamatório útil para diagnosticar infecção ou sepse neonatal, especialmente quando feita de forma seriada.
Tratamento
A decisão clínica diante desse quadro - apesar da aparente ausência de manifestação clínica do RN, até ao melhor do meu conhecimento, apesar de hemograma sem leucocitose e apesar de profilaxia adequada - foi a de realizar um esquema empírico para tratamento de sepse precoce. É possível que um exame de PCR anterior estivesse alterado, fundamentando a decisão.
Assim, optaram pelo uso de ampicilina e gentamicina durante 7 dias. Esse esquema, de fato, é preconizado pela Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul, considerando os microrganismos mais encontrados na sepse neonatal precoce e a sensibilidade destes.
Enquanto a ampicilina, um beta-lactâmico, tem ação contra gram-positivos, a gentamicina, um aminoglicosídeo, atua contra bactérias gram-positivas e gram-negativas. No entanto, esse esquema pode provocar enterocolite necrosante - e, portanto, o tempo de tratamento deveria considerar se há hemocultura positiva e a sua evolução clínica.
Comentários: toxoplasmose congênita
A toxoplasmose é uma zoonose, transmitida por meio da ingestão de oocistos (em água e alimentos contaminados) do Toxoplasma gondii. Esses oocistos estão presentes nas fezes dos felinos. Por isso, pede-se às gestantes que não manipulem Também é possível a contaminação pela ingestão de cistos presentes em carnes cruas ou mal passadas.
A forma precoce - que se relaciona a esse estudo de caso - tem sinais mínimos e inespecíficos. Ela tem a ver com fatores pré-natais e do periparto. As bactérias que causam esse quadro no recém-nascido, mais frequentemente, são aquelas presentes no trato genital feminino, como Streptococcus agalactiae, E. coli e Listeria monocitogenes.
Diagnóstico e suspeita
Desse modo, a tríade para diagnóstico envolve a clínica - como dita, muitas vezes pouco exuberante - do RN, relacionadas à suspeita, devido a presença de fatores de risco maternos e neonatais, além de investigação por meio de exames laboratoriais.
Quanto à clínica, dispneia, taquicardia ou bradicardia, distensão abdominal, icterícia, déficit de perfusão, hipotonia e letargia podem ocorrer. No caso clínico em questão, o RN não tinha nenhuma dessas manifestações - e a mãe nega qualquer sintoma significativo anterior.
Os fatores de risco relacionados ao pré-natal e ao periparto estão abaixo:
Do Guia de Bolso de Neonatologia da FMUSP |
Desses, apenas a bolsa rota prolongada pode ser identificada como risco em nosso caso. A mãe refere que permaneceu por mais de 12 horas com bolsa rota (referiu ainda que o líquido era claro). Não é claro se esse tempo foi maior que 18 horas. Foi realizada antibioticoterapia durante o trabalho de parto - uma medida profilática contraa sepse neonatal.
Entre os exames laboratoriais, além da hemocultura, um deles é o hemograma. A mãe referiu que havia sido informada de que o RN tinha uma "infecção" porque algum dos parâmetros do hemograma "estava em 17" (sic). Em prontuário, registrou-se que, logo após nascer, o RN tinha 17.500 leucócitos/mm³ - ainda insuficiente para considerar leucocitose.
No entanto, no dia 03/11, aos cinco dias de vida, o RN tinha uma PCR (proteína C-reativa) de 6.300 [6.3?]. A elevação foi atribuída como "risco para toxo" - mas esse marcador não costuma estar elevado na toxoplasmose [fonte]. No entanto, a PCR é um marcador inflamatório útil para diagnosticar infecção ou sepse neonatal, especialmente quando feita de forma seriada.
Tratamento
A decisão clínica diante desse quadro - apesar da aparente ausência de manifestação clínica do RN, até ao melhor do meu conhecimento, apesar de hemograma sem leucocitose e apesar de profilaxia adequada - foi a de realizar um esquema empírico para tratamento de sepse precoce. É possível que um exame de PCR anterior estivesse alterado, fundamentando a decisão.
Do Guia de Bolso de Neonatologia da USP |
Assim, optaram pelo uso de ampicilina e gentamicina durante 7 dias. Esse esquema, de fato, é preconizado pela Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul, considerando os microrganismos mais encontrados na sepse neonatal precoce e a sensibilidade destes.
Enquanto a ampicilina, um beta-lactâmico, tem ação contra gram-positivos, a gentamicina, um aminoglicosídeo, atua contra bactérias gram-positivas e gram-negativas. No entanto, esse esquema pode provocar enterocolite necrosante - e, portanto, o tempo de tratamento deveria considerar se há hemocultura positiva e a sua evolução clínica.
Comentários: toxoplasmose congênita
Toxoplasma gondii |
Toxoplasmose na gestação
A grande preocupação em termos de saúde pública é uma primoinfecção pelo protozoário durante a gestação. Na fase aguda de infecção, os parasitos podem provocar a infecção do feto devido à chance de transmissão via placentária. Quanto mais precoce for a infecção materna, menores as chances de transmissão vertical, mas maiores as de acometimento grave do feto - incluindo óbito fetal e neonatal.
Como a infecção é quase sempre assintomática, solicitam-se as sorologias para a toxoplasmose durante o pré-natal. Isso é feito no primeiro trimestre e nos trimestres seguintes caso a gestante seja suscetível à toxoplasmose (ou seja, tenha anticorpos IgG e IgM anti T-gondii negativos).
Como a infecção é quase sempre assintomática, solicitam-se as sorologias para a toxoplasmose durante o pré-natal. Isso é feito no primeiro trimestre e nos trimestres seguintes caso a gestante seja suscetível à toxoplasmose (ou seja, tenha anticorpos IgG e IgM anti T-gondii negativos).
No caso clínico em exemplo, a gestante teve um exame com resultado de anticorpos IgM indeterminado e IgG negativo. Em um estudo epidemiológico realizado com 2343 voluntários em Anápolis, mostrou-se rara a situação de sorologia indeterminada para toxoplasmose [1].
Nesses casos, em gestantes, é recomendada a repetição da sorologia. Caso IgM permaneça indeterminado, sem soroconversão de IgG, deve-se considerar a gestante "suscetível" [2]. Há a possibilidade de IgM falsamente positivo em soros contendo anticorpos antinucleares ou fator reumatoide [3, 4].
Desse modo, a prescrição de esquema tríplice anti-toxoplasmose para o RN - feita nesse caso específico - não parece justificada com base nos dados disponíveis no prontuário. Não houve confirmação de infecção materna, nem de infecção fetal durante o período pré-natal.
Conduta profilática e terapêutica na gestação
Também frente ao resultado indeterminado de IgM para toxoplasmose, a prescrição de espiramicina (macrolídeo que previne a infecção placentária pelo T. gondii)), feita nesse caso, parece ter pouca validação técnica.
A droga é empregada em casos de infecção materna aguda - IgM positivo e IgG negativo; ou recente - IgM e IgG positivos com baixa avidez de IgG. Na confirmação da infecção fetal (via PCR do líquido amniótico), inicia-se o esquema tríplice anti-toxoplasmose.
Infecção congênita: manifestações clínicas
No recém-nascido, a infecção pelo T. gondii pode ser desde assintomática a manifestação com uma miríade de apresentações clínicas. Destacam-se as alterações no sistema retículo-endotelial, levando a hepatoesplenomegalia. Também há um acometimento do sistema nervoso central - podendo causar hidrocefalia, calcificações cerebrais, encefalite e crises convulsivas.
Também é clássico o acometimento da retina e da coroide, levando a um quadro inflamatório que pode culminar em lesões irreversíveis com perda da visão. Isso pode se instalar não só no período neonatal, mas também ao longo da adolescência ou da vida adulta do paciente como toxoplasmose congênita.
Diagnóstico
Daí a importância do diagnóstico do recém-nascido com infecção suspeita - para que se institua o tratamento rapidamente. A investigação do recém-nascido é ampla: destaca-se a procura de anticorpos IgG, IgM e IgA contra o protozoário (a persistência de IgM após o quinto dia de vida comprova o diagnóstico). PCR no sangue e/ou líquor também são possíveis.
Outros exames importantes incluem o raio-X de crânio, a ultrassonografia transfontanela, a TC de crânio e a fundoscopia, que podem revelar alterações neurológicas e oftalmológicas típicas da infecção pelo protozoário. Hemograma e função hepática também ajudam a direcionar o diagnóstico. Nesse caso específico, uma investigação exaustiva para toxoplasmose não parece justificada - pois não havia suspeita de infecção material, de fato.
Tratamento
O tratamento do RN com toxoplasmose congênita (confirmados no momento pré-natal ou ao nascer) é feito com o esquema tríplice: sulfadiazina + pirimetamina + ácido folínico. Em casos de coriorretinite ativa, emprega-se prednisona. Esse tratamento tem duração de 1 ano - e também é empregado nos casos de suspeitas de toxoplasmose congênita, em que não é possível excluir a possibilidade de infecção.
Desse modo, a prescrição de esquema tríplice anti-toxoplasmose para o RN - feita nesse caso específico - não parece justificada com base nos dados disponíveis no prontuário. Não houve confirmação de infecção materna, nem de infecção fetal durante o período pré-natal.
Conduta profilática e terapêutica na gestação
Também frente ao resultado indeterminado de IgM para toxoplasmose, a prescrição de espiramicina (macrolídeo que previne a infecção placentária pelo T. gondii)), feita nesse caso, parece ter pouca validação técnica.
A droga é empregada em casos de infecção materna aguda - IgM positivo e IgG negativo; ou recente - IgM e IgG positivos com baixa avidez de IgG. Na confirmação da infecção fetal (via PCR do líquido amniótico), inicia-se o esquema tríplice anti-toxoplasmose.
Infecção congênita: manifestações clínicas
No recém-nascido, a infecção pelo T. gondii pode ser desde assintomática a manifestação com uma miríade de apresentações clínicas. Destacam-se as alterações no sistema retículo-endotelial, levando a hepatoesplenomegalia. Também há um acometimento do sistema nervoso central - podendo causar hidrocefalia, calcificações cerebrais, encefalite e crises convulsivas.
Também é clássico o acometimento da retina e da coroide, levando a um quadro inflamatório que pode culminar em lesões irreversíveis com perda da visão. Isso pode se instalar não só no período neonatal, mas também ao longo da adolescência ou da vida adulta do paciente como toxoplasmose congênita.
Diagnóstico
Daí a importância do diagnóstico do recém-nascido com infecção suspeita - para que se institua o tratamento rapidamente. A investigação do recém-nascido é ampla: destaca-se a procura de anticorpos IgG, IgM e IgA contra o protozoário (a persistência de IgM após o quinto dia de vida comprova o diagnóstico). PCR no sangue e/ou líquor também são possíveis.
Outros exames importantes incluem o raio-X de crânio, a ultrassonografia transfontanela, a TC de crânio e a fundoscopia, que podem revelar alterações neurológicas e oftalmológicas típicas da infecção pelo protozoário. Hemograma e função hepática também ajudam a direcionar o diagnóstico. Nesse caso específico, uma investigação exaustiva para toxoplasmose não parece justificada - pois não havia suspeita de infecção material, de fato.
Tratamento
O tratamento do RN com toxoplasmose congênita (confirmados no momento pré-natal ou ao nascer) é feito com o esquema tríplice: sulfadiazina + pirimetamina + ácido folínico. Em casos de coriorretinite ativa, emprega-se prednisona. Esse tratamento tem duração de 1 ano - e também é empregado nos casos de suspeitas de toxoplasmose congênita, em que não é possível excluir a possibilidade de infecção.
Nenhum comentário:
Postar um comentário